Estatuto que relaxa regras para porte, registro e compra de armas e munição avança no Congresso.
Vandeck Santiago (texto)
David Becker/AFP (foto)
E se o atirador que matou pelo menos 59 pessoas em Las Vegas estivesse usando arma com silenciador, quantas mortes a mais poderia ter acontecido? Quem fez a pertinente observação foi a ex-candidata a presidente dos EUA pelo Partido Democrata, Hillary Clinton, destacando que “a multidão fugiu ao ouvir os tiros”. Um tiroteio nos EUA nunca é apenas um tiroteio — é sempre um fato desencadeador de um caloroso debate sobre o porte de armas de fogo. “A nossa dor não é suficiente. Podemos e devemos por a política de lado, enfrentar a NRA (Associação Nacional de Armas) e trabalhar juntos para impedirmos que isto volte a acontecer”, escreveu Hillary numa rede social. A resposta do governo foi dada pela secretária de imprensa da Casa Branca, Sarah Sanders, que em entrevista disse que o país estava de luto pelo massacre e não era hora de falar sobre a lei de armas.
OK, mas o que nós temos a ver com isso? Noves fora a solidariedade humanitária (em tragédias como estas, independentemente de onde aconteçam, todos nós somos tocados pelo pavor vivido por quem estava no local e pela dor dos familiares das vítimas), nós aqui no Brasil estamos em meio também a uma discussão sobre o porte de armas de fogo. Em dezembro de 2003 foi sancionado aqui o Estatuto do Desarmamento, que impõe regras severas sobre o porte e o comércio de armas. Mas encontra-se pronto para votação na Câmara um projeto que na prática revoga esta lei — é o Estatuto do Controle de Armas de Fogo, que relaxa as regras para porte, registro e compra de armas. A proposta é defendida pela chamada “Bancada da Bala”, denominação dada à frente de parlamentares com alguma ligação com a indústria de armas, militares em geral e ex-policiais. Além disso, decretos do presidente Michel Temer já flexibilizam algumas das medidas do Estatuto do Desarmamento, o que tem provocado reações de entidades que atuam no combate à violência, como o Instituto Sou da Paz (SP).
Agora, voltemos aos EUA, para o estabelecimento de paralelos entre eles e nós. Lá, entre 2009 e 2016, ocorreram 156 grandes tiroteios — são considerados “grandes” quanto o número de mortos é de pelo menos quatro. Só nesses tiroteios morreram 848 pessoas. A média é de 22 “grandes” tiroteios por ano no país, com 121 mortes cada um deles. Os dados — citados ontem pelo El País — são da Everytown, entidade que defende um maior controle de armas no país. Sempre se pode estabelecer comparações desses números com o de outros lugares, mas é preciso levar em conta que estamos falando da nação mais rica do planeta. Quando são incluídos os tiroteios menores, com menos de quatro mortos, aí a situação piora — chega-se ao total de 33 mil pessoas mortas por tiros (93 por dia). Nesse sentido, como destacou a matéria do El País, a questão da violência armada nos Estados Unidos é “uma anomalia no mundo desenvolvido”.
O direito de qualquer cidadão norte-americano comprar uma arma e ter o porte é assegurado pela Segunda Emenda à Constituição de 1791. Garantido o acesso às armas, vem o interesse pelos acessórios — como o silenciador, de que falou Hillary Clinton. A compra de uma arma de fogo é simples: o interessado deve apresentar um documento de identificação com foto e encaminhar um formulário, por via eletrônica, ao Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF, na sigla em inglês), órgão do governo federal. O processo todo pode sair em menos de 30 minutos. Mas para adquirir o silenciador é preciso pagar um imposto de 200 dólares, e o processo de aprovação dura entre 9 e 10 meses. Mas já está no Congresso o projeto de Lei de Proteção Auditiva, que elimina o imposto e reduz o tempo na obtenção do silenciador. O argumento é que a medida trata-se de uma melhoria da saúde pública, uma vez que protegerá os tímpanos dos proprietários das armas…
O lobby da indústria de armas nos EUA é fortíssimo. O presidente Obama, ao longo de dois mandatos, tentou implementar medidas restritivas no uso das armas e não conseguiu. A cada tragédia, como esta de Las Vegas, o tema volta à baila — mas todos sabem que em relação à compra e porte de armas nada vai mudar. O Brasil, que discute mais uma vez o desarmamento, tem a oportunidade de ver no vizinho do Norte o que significa armas de fogo ao alcance de todos.