Jornalista foi amigo de Lênin e Trotski, e escreveu obra clássica sobre a revolução de 1917.
Vandeck Santiago (texto)
Filippo Monteforte/AFP (foto)
Estar no lugar e na hora em que um fato histórico acontece é sonho de todo jornalista. John Reed esteve no lugar e na hora em que acontecia aquele que para muitos foi o episódio mais importante do século 20: a Revolução Russa de 1917. Morreu em um dia como hoje, 19 de outubro, de tifo, num hospital de Moscou, em 1920, três dias antes de completar 33 anos. O tratamento de tifo era muito deficiente na época e, além disso, os hospitais de Moscou, em péssimas condições, estavam longe de ser o melhor lugar para tratar a doença.
Cinco dias antes de morrer, ele teve metade do corpo paralisado. Em seguida, perdeu a fala. A mulher de sua vida, a escritora e feminista americana Louise Bryant, acompanhou seus últimos instantes. Antes de ele ser internado, ela o encontrara doente, fraco e debilitado. Precisava urgentemente de repouso. Funcionários do governo russo lhe disseram que ele estava trabalhando quase 20 horas por dia. Ele queria finalizar seus trabalhos e pretendia voltar aos Estados Unidos, onde provavelmente seria preso, uma vez que lá estava fichado como comunista. Ela pede que ele descanse e não volte para os EUA. “Minha querida, eu faria qualquer coisa por você”, responde ele. “Mas não me peça para ser um covarde”. John Reed — um americano nascido numa família rica de Portland — foi enterrado no Kremlin, com funeral de herói e presença de autoridades.
O jornalismo é a história escrita nas carreiras, e ele fez isso na cobertura da revolução russa, publicada em livro com o título Os 10 dias que abalaram o mundo (em inglês, Ten days that shook the world, cuja primeira edição saiu em 1919). É como uma transmissão ao vivo, com direito à descrição de detalhes e conversas com os protagonistas do que estava ocorrendo, como Kerenski, Lênin, Trotski e Kamenev. “Figura pequena e entroncada, de grande cabeça calva e protuberante metida nos ombros”, diz ele, descrevendo Lênin. “Olhos pequenos, nariz largo e curto, boca ampla e generosa e queixo forte: estava barbeado, mas a sua barba tão conhecida no passad o como o seria no futuro, começava novamente a despontar. Vestia um terno surrado em que as calças eram compridas demais”.
O livro tornou-se um clássico, indispensável para quem quer conhecer ou estudar a revolução. O título também — a família dele estaria multimilionária hoje se recebesse um centavo a cada vez que um jornalista ou escritor intitula um texto referindo-se a um fato que “abalou” determinado lugar ou instituição (o Nordeste, ou os Estados Unidos, ou a Europa, ou um partido, ou uma empresa)…
Aos olhos de hoje, a reportagem de Reed causaria discussões por ser “apaixonada”, ostensivamente partisan, sem buscar uma pretensa objetividade — consta que, em determinado momento, até em armas ele pegou, e em outro esteve perto de ser fuzilado. “John Reed não quer ser imparcial e tem orgulho disso”, disse dele um editor americano. Para o jornalista brasileiro Geneton Moraes Neto, o livro “é um grande exemplo de uma reportagem apaixonada”, o que em sua opinião não se configurava como algo negativo: “A paixão na hora de reportar um grande acontecimento é algo que já não se vê hoje, quando o tom dos textos é marcado por uma ‘aridez de paisagem lunar’, como diria o eterno Nelson Rodrigues”.
A reportagem tem regras próprias, que a diferem do relato do noticiário tradicional. Convém atentar ainda que a narrativa é de 1917 e que Reed era um comunista militante. Nada disso, porém, diminui o valor de Os 10 dias que abalaram o mundo como jornalismo de qualidade e um relato valioso dos acontecimentos daqueles dias. Mas o tom dado por Reed aos seus trabalhos jornalísticos fizeram com que alguns editores nos EUA rejeitassem reportagens dele feitas nos campos de batalha da I Guerra Mundial. Entre 1911 e 1914 ele esteve no México, cobrindo a revolução mexicana. Durante meses acompanhou o general Pancho Villa e daí surgiu seu primeiro livro, México Insurgente, publicado em 1914.
Na vida pessoal, ele também não seguia os padrões tradicionais: tinha um relacionamento “aberto” com Louise Bryant, a ponto de em determinado momento morar junto com ela e com o amante dela, o dramaturgo Eugene O’Neill.
Neste momento em que chegamos ao centenário da Revolução Russa, vale a pena conhecer a contribuição de um jornalista que teve concretizado o sonho de estar no lugar certo e na hora certa, em um acontecimento que entrou para a história mundial.