Naquilo de ignorar a vida real, demonstramos o que não somos e fazemos o que não podemos.
Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)
Talvez ninguém se dê ao trabalho de pensar sobre isto, mas dezembro é o mês que elegemos para ignorar completamente a vida real. Por um mecanismo mental qualquer, decidimos ser o que não somos, fazer o que não podemos e, não contentes, acreditarmos que janeiro não chegará colocando nos mais afoitos a costumeira corda ao redor do pescoço para cobrar pelos excessos e devaneios. Como privados de qualquer mecanismo de defesa contra a capacidade de entorpecer do comércio, cedemos aos apelos de papais noéis gorduchos e manjados, ao encanto fake das luzes coloridas que realçam melhor o mau gosto dos produtos chineses, à música apelativa, e investimos em falsos sentimentos – aqueles que se medem pelo valor do presente e que dão a impressão de conseguir sobreviver somente até o fim da ceia. A propósito, a própria estaria mais para uma aula sobre como desperdiçar sem culpa do que para um momento de verdadeira confraternização. Come-se muito, bebe-se muito e parece existir um pacto coletivo de perdão pela alegria com que se mandam as dietas para o espaço. Pois dezembro também é um mês em que se confunde fartura com esbanjamento e caridade com esmola. As consciências se acalmam facilmente, uma vez levado a cabo aquele gesto que encerra a tal “bondade de ocasião”.
Possivelmente, o que se mostra mais detestável em dezembro seja o propósito de parecer feliz e bondoso a qualquer preço. Pinta-se a casa, capricha-se nos itens da cesta natalina, fazem-se listas disto e daquilo, planejam-se as confraternizações com seus indefectíveis amigos secretos. Uma vez, o acaso me levou a tirar uma pessoa do trabalho sobre a qual eu tinha apenas algumas poucas informações. Ela era nova na casa. Optei então por dar um álbum de Tom Jobim e depois descobri que a moça gostava mesmo era de Ivete Sangalo e Luan Santana. Foi a última vez que me permiti participar, o que pode ter restringido as oportunidades de interagir socialmente mais com aquele grupo, porém melhorou minha percepção sobre a inutilidade de certos comportamentos.
Por um mecanismo mental qualquer, em dezembro é permitido fazer de conta, mas proibido fazer contas. A maioria se comporta como aquele turista de dinheiro contado que, à menor tentação de gastar, começa a fazer um cálculo sem fim sobre quanto aquilo custaria em moeda do seu país. Até que alguém chegue para lembrá-lo que “quem converte não se diverte”. E então, como se a frase tivesse poder de “descerebrar”, ele passa a desistir de qualquer ponderação enquanto se diz que na volta aparecerá um jeito de pagar os excessos. Assim também pensam os vorazes consumidores de dezembro em relação ao mês seguinte, mesmo janeiro sendo um carrasco implacável com inadimplentes.
Por falar nisso, 61,8% das famílias brasileiras já estavam no vermelho desde outubro e 10,1% delas declaravam não ter condições de pagar as dívidas, de acordo com uma pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Sabe-se lá o que é dormir com o fantasma de um débito rondando o travesseiro, ainda mais diante de uma economia que trafega entre o bloco cirúrgico e a UTI. Neste Natal, serão 13 milhões de desempregados no país. Pesquisa inédita bem que poderia mostrar quantas pessoas ainda enxergam a data como um tempo de dar e receber amor e não de dar de receber presentes. Seria bom saber quantas ao menos lembram do nome do aniversariante e do que ele mais gostaria de ganhar – afinal, ao menos em tese, a festa é Dele.