De uma hora para outra, pré-julgar, apontar dedos, discriminar viraram comportamento natural.
Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)
O cidadão de bem não entende mesmo como é que, de uma hora para outra, tantas palavras e comportamentos deprimentes viraram moda, passaram a ser encarados como naturais – porque vindos de um número surpreendente de pessoas. O cidadão de bem se esforça, mas não consegue, por exemplo, ter a menor ideia sobre o que faz o preconceito, tão combatido em tempos recentes, estar agora instalado no cotidiano do país como se fosse uma expressão de liberdade – liberdade no sentido mais negativo: de agredir quem pensa ou age de forma diferente. “´Doença que turva nosso olhar e entorta nossa alma, que nos diminui e emburrece, é uma das enfermidades mais sérias deste nosso mundo”, escreveu a festejada escritora Lya Luft, fazendo coro às conclusões de iluminados e renomados pensadores, pessoas que dedicaram a maior parte da vida estudando a origem dessa “enfermidade”. A quem o fim dela interessaria? A resposta parece óbvia: a quem deseja uma sociedade livre, disposta a respeitar a diversidade de pensamentos, sentimentos e atitudes.
Preconceito fere, mata, exclui, molesta, deprime, torna a vida em sociedade insuportável, um jogo de vale-tudo onde a ética é a primeira a ser nocauteada. Mesmo assim, quem pré-julga se sente acima do bem e do mal e segue acreditando que defende a maior das verdades, quando nenhuma força divina ou cósmica o encarregou de nada parecido. De onde viria, então, este gosto por discriminar e apontar dedos, por torcer o nariz e tratar com desdém o indivíduo considerado “ponto fora da curva”? Sobretudo para clarear a escuridão que envolve o preconceito, as luzes do Natal deveriam servir – pois, ao menos em tese, é o tempo mais estimulante para reflexões. No entanto, refletir é uma capacidade inerente a quem tem consciência, justamente o que falta em pessoas preconceituosas.
O assunto preocupa em excesso, pois é capaz de causar prejuízos incalculáveis às vítimas, quando não acaba tirando-lhes a própria vida. Mesmo o papa Francisco tem reclamado com insistência do autoritarismo que redunda em preconceito, considerado a fonte de muitos dos males modernos. Existe desde sempre, mas vem recrudescendo e ganhando contornos de intolerância absoluta. Que obstáculo poderia ser maior à possibilidade de o mundo experimentar tempos de paz? E porque é a paz – individual ou coletiva – que está em jogo é que não faltam interessados em descer a fundo para explicar a origem do “monstro”.
Em A natureza do preconceito (1954), o filósofo Gordon Allport afirma que ele é o resultado de uma frustração, enquanto o italiano Norberto Bobbio o entende como fruto de uma generalização superficial, de um estereótipo (do tipo: baianos são preguiçosos; paulistas, arrogantes; mulheres, frágeis; ciganos, ladrões). Foi Bobbio quem disse que “para se libertarem dos preconceitos, os homens precisam antes de tudo viver em uma sociedade livre” – o que, claro, só é possível através da educação. Por fim, o alemão Theodor W. Adorno concluiu que a fonte do mal é uma personalidade autoritária/intolerante, que se mostra convencional e hostil com quem desafia as regras sociais. Com tanta gente brilhante debruçada sobre o assunto, vê-se que ele tem importância capital, porque pode definir a qualidade das relações e, perdendo força, permitir que o mundo respire melhor, seja mais habitável. Numa coisa todos concordam: é preciso transformá-lo em inimigo comum contra o qual a luta deve ser dura e incansável, mesmo que muitas vezes pareça inútil.