23.12

Nas ruas desertas de Buenos Aires, um homem só e a esperança de poder amar como se deve.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Das piores coisas da vida em sociedade é parecer feliz no período do Natal, não importando o motivo. Pode ser a casa pintada, o carro novo, os dias de pernas para o ar, o amor que bateu asas e voltou de carona com o espírito natalino, a ideia de mandar a dieta para o espaço sem dor na consciência. Qualquer um serve, até mesmo se for fruto da imaginação. Afinal, nesta época grassam as alegrias inventadas, que existem por força da tirania de um hábito – e muitos deles, nascidos de repetições descabidas, acabam sendo identificados como cultura. Logo, a “alegria” destes dias, parecendo ou não justificável, é “cultural” e, portanto, dada como certa. Naturalmente, o que em tese move todos os cristãos é o nascimento do Menino Jesus, cuja história segue emocionando e sendo contada como a mais bonita já reproduzida pela humanidade, mas não se tem notícia de que o mundo, finalmente, esteja disposto a encará-la como exemplo (Ah, o Menino Jesus, que cresceu e se transformou em ícone do amor maior, adoraria. ). Eis então um motivo real de tristeza, para destoar das expectativas gerais, porque seguimos preferindo a trajetória da personagem ao legado transformador. No entanto, fora dele, não há salvação. É no verbo amar que se esconde o milagre revelado pelo nascimento do Menino. Mas não aprendemos nunca – ou aprendemos somente depois de marcados a ferro e fogo.
Em 2005, eu estava passando o Natal Buenos Aires, sabendo que, à noite, os hotéis ficariam esvaziados de funcionários, não sendo possível pedir nem mesmo um sanduíche à cozinha. O cozinheiro só voltaria no início da tarde do dia seguinte, liberado que fora, como os demais, a passar a data junto aos familiares. Seria um desafio encontrar algum lugar aberto onde fosse possível comer e beber algo. Depois de andar pelas ruas semi-desertas do centro, eis que surge um pequeno estabelecimento com uma mesinha na frente. Sentamos. Fazia frio. Lá dentro, algumas pessoas bebiam recostadas ao balcão, como se não tivessem mais ninguém no mundo com quem fazer um brinde. Nada ali lembrava a época, muito menos o rosto dos frequentadores. Um deles me chamou mais a atenção, enquanto aguardava para fazer o pedido (apenas dois funcionários se revezavam como garçon e caixa). Era Manoelito, com camisa de torcedor do Boca Juniors. Bebeu o conteúdo do copo de uma vez, retirou do bolso um retrato e pareceu chorar discretamente. Aparentava uns 50 anos. Aproximei-me. Com o meu espanhol capenga, perguntei se não gostaria de sentar conosco, lá fora. Ele sorriu, pediu licença e beijou minha mão, em sinal de agradecimento. Pegamos duas cervejas e saímos.
Manoelito (Manoel Gimenez Ortega) contou-nos que aquela época era sempre a mais difícil. Não conseguia aparentar felicidade, depois de a mulher ter ido embora com os dois filhos pequenos viver na Bolívia, há quatro anos. Dormia mal, demorava-se pouco nos empregos e sentia-se culpado pela vida difícil que proporcionara à família, razão do afastamento. Então, nesta data, sempre se impingia a solidão como forma de expiar as bobagens feitas. Também não queria, com o peito pesaroso e descompassado, destoar da comemoração dos vizinhos. No entanto, vinha buscando mudar. E naquela noite, especialmente, sentia-se mais confiante: havia sonhado que o filho menor era o Menino da Manjedoura convidando-o para dividir uma broa. E concluiu que a reconciliação poderia estar bem próxima – com o aniversariante e com a família. Se tivesse mais uma chance, nos disse, nunca mais deixaria de dar a todos um bom Natal. Tinha aprendido a lição.