A polêmica sobre a foto da criança negra no Réveillon de Copacabana mostra que cada um vê o que quer.
Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)
No meio de tanta farofa, tantos perus, tanto espumante e de um céu tomado por fogos de artifício, havia que surgir algo diferente, que estivesse além da expectativa de um ano cheirando a novidade. Em tempos de redes sociais a todo vapor, Réveillon, no Brasil, carece sempre de uma pitada de “acontecimento”, para a conversa render até depois da ressaca, afastando a monotonia que ameaça as timelines no primeiro dia de janeiro. E ela veio das águas da Praia de Copacabana (Rio) onde um menino negro, 9 anos, de bermuda e sem camisa, olhava encantado para o show pirotécnico, enquanto a multidão se confraternizava na areia, entre abraços e selfies, sem se dar conta da cena. Atento mesmo, só o fotógrafo Lucas Landau, a serviço da Agência Reuters, que viu sua imagem ganhando compartilhamentos e likes quase na mesma proporção da diversidade de interpretações surgida nas legendas dos posts. Imediatamente me veio à cabeça a peça Assim é (se lhe parece), do italiano Luigi Pirandelo, que, mesmo de 1917, continua atualíssima diante do triunfo da bisbilhotice sobre a verdade dos fatos.
Em um país cheio de fraturas e sem remédio para fechar cicatrizes nascidas de uma política nefasta, a ordem é julgar segundo a natureza da mágoa de cada um. Houve milhares dispostos a entender a imagem como um retrato vivo do Brasil atual, outros preferiam ver na aparente indiferença com o garoto a desfaçatez dos que verbalizam o desejo por justiça social, mas se mostram incapazes de mover uma palha por ela; outros tantos, menos atraídos pelo radicalismo, acabaram optando pelo lado mais humano, aquele em que a beleza em si acaba por arrancar de qualquer um certo e incontrolável extasiamento. O fato de a imagem ter reforçado o estereótipo do negro como alguém abandonado, com fome, mal vestido e destoando da maioria “branca”, o que fez foi despertar indignação de movimentos contra o racismo, para os quais o menino seria apenas alguém maravilhado com o espetáculo.
A bem da verdade, não havia verdade nenhuma apurada pelo autor da foto, também jornalista, que se disse impossibilitado de conversar com o menino, tal o barulho produzido pela queima de fogos. Assim, não existia ninguém ou qualquer fonte garantindo que realmente se tratava de um garoto pobre, sozinho, à mercê da própria sorte.Neste caso, sobreviveu apenas o registro como imagem exuberante, daquelas raras que, como enunciou o pai da fotografia, Henri Cartier-Bresson, ilustram perfeitamente o conceito de instante decisivo, “quando elementos visuais e emocionais se unem em perfeita harmonia e expressam a essência da situação presenciada pelo fotógrafo”.
Diante de tantas demonstrações, em 2017, de que os movimentos contra o racismo andam cada vez menos tolerantes com o estereótipo de que os negros são coitadinhos e merecedores de pena, foi um balde água fria no frisson geral a declaração de Mayara Assunção, do Coletivo Kianda: “Eu vejo uma criança que parou para olhar a queima de fogos no meio de uma festa. Sinceramente, nós temos que parar de achar que todo menino negro e sem camisa está abandonado, triste, sozinho, infeliz e contrastando com a felicidade dos outros. Temos que parar de achar que todo menino sozinho é criança que vive em situação de rua (…) Parem! Vocês nem sabem quem é aquela criança …”
Num Brasil em que a mentira não tem pernas curtas e o “livre pensar” redunda em conclusões as mais discrepantes, Pirandello, com sua peça, bem poderia ser recebido, hoje, como perfeito tradutor da maluquice nacional.