A notícia do terremoto que devastou o Haiti, em 12 de janeiro de 2010, me impactou de mareira profunda. Dois anos antes, tinha passado quatro dias em Porto Prícipe a convite da Missão das Organizações das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah, na sigla em francês). As lembranças ainda eram muito fortes e, por isso, resolvi que tinha que escrever algo sobre o assunto. Passar ao leitor do Diario de Pernambuco um pouco da experiência e impressões que tive nos quatro intensos dias, quando participei de patrulhas pelos bairros mais pobres da periferia, percorri a cidade de ponta a ponta, entrevistei autoridades da ONU, generais, diplomatas, representantes de ONGs e gente na rua. Mas a quantidade de notícias e informações publicadas na imprensa mundial, divulgadas a exaustão por jornais, revistas, sites e TVs, era um desafio para a minha matéria. O quer dizer de diferente? Como fazer para não ser repetitivo?

Veja aqui a notícia do terremoto publicada no Diario

Foi aí que lembrei de Pierre, o intérprete da tropa de paz brasileira. Através da sua incrível história poderia mostrar um pouco da alma do haitiano. Das anotações de minhas conversas com ele, que beiravam às vezes ao realismo fantástico, nasceu a reportagem “Onde estará Pierre?”, publicada no dia 17 de janeiro de 2010, o primeiro domingo após a tragédia. Eis o texto de abertura da reportagem:

Onde estará Pierre ?

O Haiti visto pela incrível história do intérprete das tropas brasileiras

Assim que soube da tragédia no Haiti temi pela vida de Pierre Andregem. Primeiro por motivos óbvios. Pierre, intérprete da tropa de paz brasileira, mora em uma casa de primeiro andar numa área próxima da Route Tabarre, na capital Porto Príncipe. O endereço e as estatísticas o tornam, infelizmente, uma vítima em potencial do terremoto. Medo reforçado pela falta de informações, drama também vivido por muito familiares e amigos de pessoas que presenciaram o desastre. No entanto, o temor ganhou força por motivos sobrenaturais. Isso porque, no dia em que conheci Pierre, ele disse que morreria aos 53 anos. Justamente a idade que tem agora. Mas, para entender essa última parte, é preciso conhecer um pouco da história do homem que sabia o passado, lamentava o presente e previa o futuro.

Pierre Andregem parece que saiu de um livro de Gabriel Garcia Márquez. Fala (e fala muito) fluentemente francês e creole (línguas oficiais do Haiti), português, inglês e espanhol. Formado em teologia pela União Evangélica Batista do Haiti, desde 1986 é professor de ciências e letras. A esposa, Ena Patrice, estava em 2008 no Canadá. Estudava para ser bombeira. Imagino que, se não foi vítima do tremor, deve estar tendo um papel decisivo nos trabalhos de resgate.

Encontrei Pierre em dezembro de 2008, numa das experiências mais marcantes da minha vida pessoal e profissional. Foi quando, a convite da Missão das Organizações das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah, na sigla em francês), passei quatro dias em Porto Prícipe. Participei de patrulhas pelos bairros mais pobres da periferia, percorri a cidade de ponta a ponta, entrevistei autoridades da ONU, generais, diplomatas, representantes de ONGs e muita gente na rua. Mas conheci o Haiti, de verdade, nas conversas com Pierre entre uma missão e outra.

Embora viva em condições bem melhores do que a grande maioria dos seus conterrâneos, Pierre traz características que servem para ilustrar como pensa e age seu povo. Uma dessas características é a religiosidade. Como grande parte dos haitianos, ele jura que não acredita em vudu (religião muito forte no país). Mesmo assim, fala com toda convicção que não passará dos 53 anos.

Todo mundo na família, segundo ele, tem esse dom (ou maldição). Seu pai, Murigéne, era canibal. Previu que morreria – e morreu em 1975 – com 49 anos. Grau 39 no vudo, todo dia 21 de dezembro participava de um ritual sagrado (moudong melay), transformava-se em cachorro e saía pela rua com sua banda bizango, comendo quem cruzasse pelo caminho. Já a mãe Carilia (grau 21) morreu em 1962, como estava previsto. Só praticava o bem e curava doentes. O avô de Pierre, ainda segundo ele, no lugar onde fazia coco pegava fogo. E tinha uma reza que, quando deitava, ficava tão pesado que ninguém conseguia levantá-lo.

Histórias como as contadas porPierre são comuns no imaginário dos haitianos. São narradas como verdade. Difícil de acreditar para quem é de fora. Mas e se Pierre realmente acertou na sua premunição e estiver morto? Espero que ele, desta vez, quebre a tradição familiar e viva muito além dos 53 anos previstos. E, dessa forma, possa ajudar seu país em outra tradição nacional: a de ser reerguer depois das tragédias.

Veja a reportagem completa

“O povo não tem conhecimento da democracia”

Antes de ser professor, entre 1975 e 1981, Pierre esteve no exército de Jean-Claude Duvalier , o Baby Doc. Não gosta do ditador que foi deposto em 1986. Mas simpatiza com Françoais Duvalier , o Papa Doc, pai de Baby. Pierre tem até uma foto dele no telefone celular. “Ele era braço forte e mão amiga, igual ao exército brasileiro”. Para Pierre, a diferença de Papa para Baby é que o primeiro se preocupava com o povo. O segundo, não. “Naquela época não havia tanto caos”.

Os dois, pai e filho, comandaram no Haiti, entre 1957 e 1986, numa das mais sangnárias ditaduras das Américas. Talvez ainda influenciado pelo longo período de trevas e pela histórica instabilidade institucional do país, ele não fala muito sobre política. Limita-se a dizer que “infelizmente o povo não tem conhecimento de democracia. Sabe cobrar os direitos, mas esquece os deveres”.

(Foto com Lula, quando o presidente visitou o Haiti em 2004, que Pierre mostra para todo mundo)

 

“Nós não somos escravos”

Pierre foi quem me explicou a “sociologia da camisa” no Haiti. Perguntei a ele por que, numa cidade banhada pelas águas quentes do Caribe , não tinha visto ninguém de bermuda ou sem camisa. A resposta foi simples: “Porque nós não somos escravos”.

Para os haitianos – que se orgulham de ser a primeira república negra das Américas, depois que J.J. Dessalines liderou, em 1804, a revolta que acabou com a execução de todos os brancos da então colônia francesa – andar sem camisa remete à escravidão. Dessalines comandou os rebeldes haitianos que venceram dezenas de milhares de soldados de Napoleão Bonaparte.

Mas a guerra de libertação, motivo de orgulho para o Haiti e exemplo para os demais países americanos nas suas lutas de independência, deixou o país arrasado. O boicote das demais nações e a altíssima indenização cobrada pela França tiveram conseqüências diretas no atual estágio de miséria do povo haitiano. Cerca de 80% da população sobrevivendo abaixo da linha de pobreza, com menos de US$ 2 por dia. O Haiti éo país mais pobre do mundo, tirando os africanos.

 (Lixo e soldado: cenas comuns do cotidiano de Porto Príncipe em novembro de 2008)