Efemérides cumprem bem o papel de reavivar histórias individuais, familiares e coletivas. Os 35 anos da assinatura da Lei da Anistia, que permitiu a volta de tanta gente, até do irmão do Henfil, são lembrados no Em Foco do Diario de Pernambuco desta quinta-feira por Silvia Bessa, uma das autoras do webdocumentário Filhos do Golpe, a partir da entrevista que não conseguiu. Um relato jornalístico para ler e assistir. E não esquecer jamais.
Marta: presente!
Datas como a de hoje, que marca 35 anos da Lei da Anistia, fazem reavivar a ainda atual luta em favor da democracia
Silvia Bessa
Tinha solicitado a Marta uma entrevista, na qual ela relataria olhando para uma câmera de vídeo como e o quanto foi afetada pelo Golpe de 1964 e pelo regime ditatorial instalado no Brasil. Trocamos alguns telefonemas. A ideia foi bem acolhida; em certos dias parecia que estava falando com alguém muito próximo. Eu e Marta, filha de presos e perseguidos políticos muito respeitados pela cúpula do PCB, nunca nos vimos. Prudente, ela achou por bem produzir algo como um roteiro para inspirar minhas perguntas. Agradeci e aguardei. A médica nefrologista e professora aposentada da UFPE Marta Regueira Teodósio se sentou então diante do computador e escreveu em seis páginas um testemunho sob o título DITADURA CIVIL MILITAR NO BRASIL: breve relato sobre o impacto para minha família.
Fez mais de uma versão, revisando-se com recordações e dores de única filha dos quatro filhos dos militantes e também médicos Naíde e Bianor Teodósio. Ao receber, li com atenção o texto. Desejei mais ainda a entrevista (seria incorporada ao webdocumentário Filhos do Golpe, um projeto que visava marcar os 50 anos da tomada do poder com documentos orais). Desmarcamos o encontro com Marta mais de uma vez. A cada contato telefônico, percebia o quanto a possibilidade de se deparar com o passado a incomodava. Ela se esforçou para cumprir o compromisso – percebi. As lembranças, entretanto, não permitiram.
Recebi uma ligação numa sexta-feira à noite. A entrevista seria no sábado pela manhã. Era a filha de Marta, Marion, informando que a mãe havia sido hospitalizada. Foi rápida na explicação – e eu ouvi o eco de cada palavra. Cancelamos em definitivo. Desejei melhoras para ela e desliguei entendendo de forma ampla o desconforto que é para filhos de mortos, desaparecidos e exilados dos anos de chumbo falar sobre o que viram, ouviram, sentiram e sentem até hoje.
Aquele telefonema deu intensidade ao último parágrafo do texto que Marta me enviou: “Pela primeira vez consigo descrever alguns detalhes deste meio século de existência. Hoje, mãe de três filhos e avó de seis tenho o sentimento de que a ditadura civil militar provocou incalculável atraso social e científico e incomensuráveis perdas individuais”. Marta continua sofrendo com os traumas do regime militar. Ainda na carta, confessou-me: “Tenho comigo uma grande tristeza por ter perdido o convívio de parentes, amigos, colegas e companheiros”. Noutro trecho, lamentou porque seu primeiro voto para a Presidência da República sé veio em 1989, dez anos após a anistia política (“Esta foi, sem dúvida, uma grande frustração imposta pela ditadura”).
Falei com Marta ontem, dizendo que a citaria neste artigo. “Fique à vontade. Que bom que eu posso contribuir com a história”, respondeu-me. Achei oportuno falar dela porque nesta quinta-feira, 28 de agosto de 2014, comemora-se 35 anos da Lei nº 6.683/79, que concede anistia a todos que “cometeram crimes políticos ou conexos com estes crimes eleitorais (…)”. Marta, os irmãos Joel e Mano, além dos pais Naíde e Bianor, foram alguns dos brasileiros anistiados desses últimos 35 anos. Lembrei de tantos filhos que choraram ao lembrarem daquilo que viveram e daquilo que deixaram de viver. De Lula Arraes, que nos concedeu a primeira entrevista. Lembrei da emoção de Lutgardes Freire, Anatólio Julião, Joana Côrtes, Felipe Santa Cruz… Dos lábios trêmulos do também médico Paulo Max, personagem da última entrevista gravada e que nos contou o sofrimento da mãe dele, uma das primeiras mulheres brasileiras torturadas pela ditadura. De tantos que foram anistiados ou que tiveram pais anistiados, vivos ou post mortem. Daqueles que sofreram ou viram a tortura de perto, como Marta – que conta ter presenciado a tortura de Gregório Bezerra à luz do dia, “sendo arrastado pelo coronel do Exército Darcy Villocq, amarrado com a corda no pescoço e sangrando muito”.
Eles me fazem pensar que há datas que mereciam ter um “xis” no calendário escolar pela importância histórica. Porque foi a partir da Lei da Anistia que se iniciou a abertura política, a redemocratização, a devolução dos nosso direito ao voto e à livre expressão. Acho que efemérides como a de hoje cumprem bem o papel de reavivar histórias individuais, familiares e coletivas de um país que, 50 anos depois, teima em esconder violências praticadas nas unidades militares entre 1964 e 1985, como quer o general Enzo Peri – comandante do Exército, que há pouco impôs silêncio aos subordinados sobre crimes da ditadura.