Dar voz a quem sempre teve a sua história barrada pelos muros do preconceito. Este foi o eixo que resultou no caderno especial Vidas partidas, escrito pela repórter Júlia Schiaffarino, que representará o Diario de Pernambuco no Prêmio Esso de Jornalismo 2014, na categoria Regional Norte/Nordeste. Da editoria de Política, ela descobriu um material que ia além de uma questão de saúde pública. Era uma reparação para um grupo de brasileiros e pernambucanos que viram as famílias desfeitas por uma decisão governamental. Pela complexidade do tema, as doze páginas demoraram a ser publicadas, o que finalmente ocorreu no dia 9 de fevereiro deste ano. Durante a apuração, alguns personagens morreram, o que demandou atualizações dos textos e novas checagens sobre o andamento das indenizações, que continuam na estaca zero até hoje. Neste percurso, ela trabalhou em conjunto com a repórter fotográfica Teresa Maia. A edição final ficou a cargo de Lydia Barros, com design de Christiano Mascaro. A partir do tema e dos personagens de Júlia, o repórter Filipe Falcão produziu um documentário de 15 minutos de duração, com resultado tão emocionante quanto o papel. O especial na sua versão multimídia, coordenada por Jaíne Cintra e design de Taís Nascimento pode ser conferido clicando aqui.
Como a repórter deu voz aos personagens, em relatos em primeira pessoa, agora é a vez dela mesmo contar como foi:O especial Vidas Partidas traz a história da hanseníase no Brasil pelos olhos dos filhos daqueles que, um dia, se viram condenados ao isolamento compulsório devido ao mal de Hansen. Nas linhas que desenham este caderno, o relato, por horas assustador, de crimes cometidos contra os Direitos Humanos em nome de uma política de saúde segregacionista e que se mostrou pouco eficaz.
Essa pauta chegou até mim em uma tarde comum enquanto acompanhava uma reunião de rotina na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Filhos de antigos internos tinham ido até lá buscar ajuda para conseguir indenizações junto ao governo federal pelos abusos do passado.
Fui atrás de saber que abusos eram esses e me deparei com casos que até hoje doem lembrar como adoções ilegais, abusos físicos, sexuais e psicológicos, trabalhos forçados, preconceito, rejeição e até desconhecimento do próprio passado. Sofrimentos passados nas idades mais vulneráveis: a primeira e segunda infância.
Percebi que muito havia sobre os doentes e os temidos Hospitais Colônia para onde eles eram enviados com a sentença de esquecimento, mas eram poucos os registros sobre os filhos. Não há um número, sequer aproximado, de quantos precisaram ser deixados para trás. Menos ainda dos que foram separados após segundos de vida, os nascidos dentro dos Hospitais Colônia em maternidades clandestinas. Partos dolorosos feitos na mesma sala de operação onde ocorriam as amputações.
Sem nunca segurá-los, ou vê-los de perto, as mães tinham seus filhos levados para longe. Mães como Dona Ana, a primeira personagem que entrevistei. Mais de 50 anos depois ela ainda procurava pela filha desaparecida. Uma “criança linda” como me descreveu, e que só conheceu por foto. Ela me contou a história dela segurando o retrato da pequena de apenas cinco anos na mãos, como se embalasse um bebê. Quando terminou, me agradeceu e disse que “estava mesmo precisando falar”.
Dona Ana faleceu no final do ano passado. Não pode ver esse material finalizado, mas o agradecimento dela e a incógnita sobre a filha dela me acompanham até hoje e me deram forças para terminar o especial Vidas Partidas.
Por várias vezes ao longo dos meses de apuração pensei que não conseguiria terminar, tamanha foi a minha imersão naquele passado sombrio. Em vários momentos era como se ouvisse as vozes silenciosas daquelas crianças que olhavam para mim em rostos adultos e marcados pelo tempo. Elas ecoaram dentro de mim até a hora de escrever a linha.
Em muitas páginas cheguei a chorar. Escolhemos relatar o máximo possível em primeira pessoa para preservar o sentimento deles. Essas vozes permaneceram caladas por anos e ainda hoje elas clamam por justiça.