Ser Teatro

Subversivo das palavras, utópico inquieto, o teatrólogo Augusto Boal (1931-2009) segue vivo no caos de Santo Amaro, bairro central do Recife. Ensina protagonismo a uma fábrica de sonhos e respira a transformação do Teatro do Oprimido (TO) cada vez que um dos jovens do Bando de Teatro Eu Já Disse Tudo pisa forte em cena, reconquistando o direito à palavra, tornando-se “espectador”. A relação de Boal com Pernambuco, porém, vem de antes. Começou a ainda na década de 1960, quando na busca pela simbiose teatro-povo, entrou em contato com as Ligas Camponesas. Coube a um agricultor, líder campesino plantar algumas das primeiras sementes das bases que serviriam, mais tarde, para sistematizar o método do Teatro do Oprimido. Esse diálogo de Augusto Boal com o estado, bem como os 85 anos que completaria, se vivo, e os 30 anos o Centro do Oprimido (CTO) símbolo do surgimento do método no Brasil, ambos este ano, são tema do especial Boal Vivo, produzido pelas jornalistas Júlia Schiaffarino e Isabelle Barros.

Ao logo dos textos,trazemos, um pouco, do jeito de fazer tetro à Boal, ora com palavras e histórias emprestadas pelo Nextos, grupo profissional, que reúne dois atores de formação, trabalhando com temáticas como o teatro na prisão e a violência contra a mulher, ora pelos atores do Bando Teatro, braço do projeto Fábrica e reúne mais de 30 jovens de histórias e trajetórias heterogêneas – usuários e ex-usuários de drogas, vítimas de abuso sexual, pessoas viveram o mundo do tráfico e da prostituição, homossexuais, transexuais e moradores e ex-moradores de rua. Seis deles, protagonistas da peça Os Sete Cracks, que sintetiza de maneira atual, técnicas do Teatro do Oprimido, ao mesmo tempo em que leva para cena temas como drogas e violência urbana.

Augusto Boal é considerado um dos principais teatrólogos brasileiros não apenas por ter dominado a arte da cena – poderosa linguagem – mas por dedicar a vida para que, abertas as cortinas de um teatro “infinito”. Cabelos desgrenhados, falar agitado, tinha necessidade de gente e olhos atentos de quem aprendeu a observar os mil jeitos humanos atrás do balcão da padaria do pai, no bairro da Penha, Rio de Janeiro. “Boal, antes de tudo era uma pessoa e isso é o mais lega. As pessoas idealizavam muito ele e ele costumava brincar: às vezes passo e me olham de um jeito que tenho vontade de sair correndo com medo que coloquem em um museu… Mas a maior característica como teatrólogo é a de querer colocar a arte a serviço da vida, da sociedade e das mudanças”, comentou a socióloga, atriz, curinga do TO e autora do livro Raízes e Asas do Teatro do Oprimido Bárbara Santos. Ela acrescenta: Boal morreu aos 78 anos e aos 78 anos ainda estava criando, preocupado em como o oprimido pode encontrar uma forma de dar vazão a sua maneira de entender o mundo, de expressar aquilo que ele compreende”.

Desafiados a resistir, os jovens do Fábrica têm conseguido corresponder a essa preocupação daquele Boal revolucionário que, certa vez, questionado sobre como gostaria de ser lembrado, disse: “Gostaria de ser lembrado na prática, por pessoas que estão fazendo o futuro”. Sob a direção do arte-educador Genivaldo Francisco, os jovens do Fábrica não têm sequer uma sala para chamar de sua. “Somos nômades de espaço”, lamenta. Ainda assim, com maturidade de profissionais, souberam se apropriar do teatro e da palavra, tanto em cena, quanto fora dela, tornando-se roteirista de si. Desta feita, além dos que vão para o palco, todo o restante do espetáculo é feito unicamente pelos integrantes do Fábrica. “Se tiver que fazer um projeto eles buscam alguém que saiba a técnica para ensinar e, então, eles fazerem o projeto. Desde a luz, figurino, até a venda dos ingressos lá na entrada. São eles que executam tudo. O teatro é deles”. Para além dos espetáculos, essa palavra ecoa. “Aqui eles aprendem a bater nas portas, ir atrás dos seus direitos, reivindicar. Se foram para uma audiência pública eles não vão ficar calados, aprendem a se posicionar, assim como se posicionam quando estão numa peça”.

A peça Os Sete Cracks é criada a partir das histórias de cada um dos sete personagens principais. “São histórias muito impactantes. Eu entro em cena e faço o papel do mediador e eles são corajosos porque realmente falam tudo. Vão para o palco como artistas, mas sabendo que vão falar de algo real. Teve uma menina que havia sido violentada pelo pai ainda criança, no dia em que ganhou o brinquedo que ela sonhava. E ela conta porque chegou na ponte do limoeiro e caiu na prostituição. Nós produzimos, então, para que ela ganhasse novamente a aquele brinquedo em cena e desconstruísse o que aconteceu. Na hora ela disse: ‘eu quero esse brinquedo, mas eu recebo ele hoje porque é dado de coração’”.

Outra história reproduzida no palco foi o de Íris Márcia, ex-moradora de rua que vivia até o mês passado embaixo da ponte do Limoeiro. “Está vendo esses sacos? São as coisas dela que ficam deixa aqui. É a vida dela porque ela mora na rua, mas te digo que todo o ensaio ela está presente”, comentou Genivaldo, há cerca de um mês atrás, apontando para dois sacos de lixo com roupas no canto de uma sala. Durante o processo de reescrita da própria história, Íris conseguiu um aluguel social e hoje se divide entre o teatro e a busca de um emprego. Segue no fábrica e passou a integrar o elenco principal.