Felipe Camarão, capitão-mor dos índios do Brasil

Um grande guerreiro e um líder político influente na guerra contra Holanda

Antônio Felipe Camarão foi condecorado por dois reis. Em 1635, recebeu de Felipe III da Espanha o título de “dom” e o hábito de Santiago. Em 1641, ganhou do português D. João IV o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, o título de fidalgo com brasão de armas e o posto de capitão-mor de todos os índios do Brasil. E ele fez por merecer todas essas honrarias, não apenas pelo desempenho nos campos de batalha, como também pela influência exercida sobre várias tribos, levando-as a apoiar os luso-espanhóis na guerra contra os holandeses, que invadiram Pernambuco em 1630.

Com a vitória flamenga e a chegada de Maurício de Nassau, em 1637, contudo, Camarão foi obrigado a asilar-se na Bahia, ao lado de outros combatentes veteranos como Henrique Dias e André Vidal de Negreiros. E por lá ficou até 1644, quando chegou a notícia de que Nassau voltara para a Europa. E sem o conde, o único em condições de manter a paz no Brasil Holandês, era certo que os pernambucanos logo se rebelariam. Então, ele se pintou de novo para a guerra…

GRAVE E PONTUAL

Nascido numa aldeia indígena do Rio Grande do Norte, no início do século, ele ganhou o nome “Poti”, que na língua potiguar significa “camarão”. Convertido, porém, ao catolicismo, foi batizado na adolescência com o nome cristão de Antônio. E adotou, também, o Felipe, em homenagem ao então soberano espanhol. Com os padres jesuítas, Poti aprendeu a ler, a escrever, e se tornou um sujeito sério e compenetrado — ou, “mui grave e pontual, que se quer mui respeitado”, segundo um cronista da época. Considerava, por exemplo, de suma importância tanto a correção gramatical quanto a pronúncia perfeita. E chegava a usar intérprete ao tratar com pessoas de nível superior ao dele, porque, falando em português, “podia cair em algum erro ao pronunciar as palavras, por ser índio”.

Quando os holandeses chegaram, Poti chefiou com bravura seus irmãos de raça engajados nas tropas luso-espanholas, sempre ao lado da mulher, Clara Camarão, tão guerreira quanto ele. E desempenhou, também, um importante papel político, num tempo em que os indígenas ainda formavam grande parte da população brasileira.

ÍNDIOS E EUROPEUS

As relações com os nativos foram de suma importância para os europeus que, no início da colonização, dependiam deles para lhes fornecer os alimentos — peixes, caça, farinha de mandioca — que não eram capazes de adquirir sozinhos. Também utilizaram seus serviços na exploração do pau-brasil e, em seguida, nos engenhos e canaviais, antes da importação maciça de escravos africanos. Um século depois já não havia tanta dependência, mas a chegada dos holandeses os colocou de novo em primeiro plano. Aliados a um lado e ao outro, os índios pesaram bastante na balança da guerra.

Os flamengos tinham plena consciência da importância dos indígenas. Já na primeira tentativa de invasão, em 1624, levaram alguns deles da Paraíba e da Bahia para a Holanda, onde os educaram e aculturaram. E quando retornaram, seis anos depois, trouxeram-nos de volta para usá-los como intermediários nos primeiros contatos com seus irmãos de raça — inclusive com os ferozes tapuias, que viviam no interior e eram inimigos mortais dos portugueses e dos tupis do litoral.

Visando formar alianças, já em 1629 — um ano antes, portanto, de desembarcarem em Pernambuco —, os holandeses proclamaram o direito dos “brasilianos” à liberdade. E durante o governo de Nassau a relação com eles chegara ao seu melhor nível. “Da amizade com os índios depende em grande parte o sossego e a manutenção da colônia do Brasil”, escrevera o conde, num relatório enviado à Companhia das Índias, em 1644. E ainda: “Deve-se permitir que eles conservem a sua natural liberdade, vivam do modo que entenderem e trabalhem onde quiserem”.

A disputa pelo apoio indígena, enfim, era grande. Apesar de os europeus, em geral, fazerem ressalvas ao seu desempenho no campo de batalha.

VALIOSOS NA GUERRA

Segundo o próprio Camarão, os índios eram soldados “precipitados, inquietos e sem fleuma”. Ou seja, querendo lutar, lutavam; se não, desertavam, sem constrangimento. Tampouco tinham disciplina, correndo à vontade de um lado para outro, nos combates. “É coisa estranha de se ver dois ou três mil homens nus flechando uns aos outros, com grandes assobios e gritos”, escreveu o português Pero de Gândavo. Mas, “para descobrir e assegurar caminhos”, seu valor era imenso. Eles conduziam os europeus “pelos lugares mais ásperos e difíceis, passavam a nado os soldados que não ousavam aventurar-se nos grandes rios e cortavam os espinheiros e silvados espessos”.

Também eram muito eficientes no transporte de cargas, na construção de pontes e jangadas e no fornecimento de víveres. E, por fim, eram “desempenados e ágeis”, e “na velocidade da carreira, dificilmente cedem às feras”.

Frei Manoel Calado, o principal cronista da guerra contra os flamengos, chegaria a afirmar que a aliança com certas tribos indígenas fora “a causa e o principal instrumento de os holandeses se apoderarem da capitania de Pernambuco, e de a conservarem por tanto tempo”. Mas, se isto é verdade, é certo, também, que outras tribos tiveram papel decisivo na sua expulsão.

E à frente delas estava Poti.

Um autêntico herói do povo brasileiro

Voltando da Bahia, em 1645, Felipe Camarão participou de inúmeros combates sob as ordens de João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, e ajudou a manter os holandeses encurralados, mais uma vez, sem poder por os pés fora do Recife. Exatamente como fizera anos atrás, na “guerra velha”, sob o comando de Matias de Albuquerque. Cansados, porém, de passar fome, os flamengos resolveram tomar a iniciativa na guerra, em 1648, e saíram para tentar capturar Nazaré, o principal porto marítimo utilizado pelos pernambucanos, no Cabo de Santo Agostinho. Mas foram interceptados no morro dos Guararapes, no dia 18 de abril.

Nesse combate, os flamengos estavam em número maior, além de muito melhor armados, e Poti e seus guerreiros tiveram um papel fundamental. Os europeus, calçados com longas botas e vestindo pesados uniformes, foram atraíram pelos índios para um manguezal, onde atolaram na lama, e lá destroçados a flechadas e golpes de tacape.

No final, a vitória na primeira batalha dos Guararapes foi brasileira. Mas teve um alto custo. Em consequência dos ferimentos recebidos, segundo uns, ou de uma febre palustre que adquiriu por lá, segundo outros, Poti morreu pouco tempo depois, no dia 24 de agosto, deixando seus títulos e o comando das tropas indígenas para o seu sobrinho, Diogo Pinheiro Camarão.

Em 2012, Felipe Camarão teve seu nome assentado no “Livro de Aço”, que está no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília, ao lado de outros combatentes da Restauração. Mas, muito antes disso, ele já estava inscrito na memória popular como um autêntico herói brasileiro.

Elogio sincero

O valente Poti recebeu homenagens até dos seus inimigos. Cristovão Arciszewski, por exemplo, oficial polonês a serviço da Companhia das Índias, no final da sua carreira declarou publicamente: “Há quarenta anos milito na Polônia, na Germânia e em Flandres, ocupando sempre postos honrosos, e somente veio abater-me o orgulho e desonrar-me um índio brasiliano de nome Camarão”.

População indígena

Calcula-se que no início da colonização havia de dois a quatro milhões de índios no Brasil, divididos em centenas de tribos falantes de línguas oriundas de dois troncos principais, o Tupi e o Macro-Jê. Nos tempos de Felipe Camarão já seriam bem menos, devido aos massacres e as doenças introduzidas pelos europeus. E em 2010 eram novecentos mil, segundo dados do censo do IBGE daquele ano, divididos em 305 etnias e falando 274 idiomas. Embora sua população venha aumentando nas últimas décadas, eles continuam sofrendo violências, perda das suas línguas e costumes, e “grilagem” das suas terras em muitas regiões do País. Inclusive em Pernambuco, onde restavam apenas dez mil, em 2010, já bastante aculturados e mantendo a duras penas o que restou dos seus territórios, línguas e costumes.

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