“Se você quiser jogar no meu time eu lhe dou a 10 e a faixa (de capitã). É só sentar aqui.”

A volante Gerlane Alves, 24 anos, relembra a história com um sorriso sem graça, desajeitado, de quem até hoje não acredita no que escutou, no que viu. No assédio inescrupuloso praticado com a certeza da impunidade. Direcionado à outra jogadora, mas na frente do time inteiro. “Só” mais uma vítima. Como a própria Gerlane. A atleta já deixou um clube por ser cortada da lista de relacionadas depois de negar sair com o treinador. Já ouviu conversas sobre quem “pega mais novinha” na equipe. E também que o futebol feminino não cresce por “estar cheio de sapatão”. A modalidade teria que ficar mais atraente para os homens, sugeria o autor da estúpida frase.

Os comentários machistas e preconceituosos vieram de treinadores e membros de comissões técnicas que trabalham no futebol feminino. São algo frequente, como mostra o resultado de uma pesquisa realizada pelo Superesportes com 55 jogadoras que atuam em Pernambuco. Com a garantia do anonimato, responderam questões sobre assédio, preconceito, sexualidade.

Entre as entrevistadas, 27,3% já foram assediadas sexualmente ou moralmente por um profissional com quem trabalharam diretamente. Um número ainda maior, de 32,7%, já viu acontecer com outra jogadora. O índice cresce quando o universo dos ofensores é ampliado: 63,6% já foram alvo de preconceito por parte dos próprios familiares. 78,2% já passaram algum constrangimento no convívio cotidiano, nas ruas.

Agressões silenciadas pelo medo, pela intimidação. Poucos episódios se transformam em denúncias. Das 55 atletas que responderam a pesquisa, somente duas registraram queixa na polícia. O argumento para o silêncio é o receio de um prejuízo fatal para carreira. As atletas poderiam ser barradas não só do time, como também de outras equipes no estado. “A única solução viável para mim era expor a situação diante da equipe, rebater na hora ou sair do time”, atesta Gerlane.

A pesquisa

O questionário abaixo foi aplicado com 55 jogadoras que atuavam no futebol pernambucano em 2017. Algumas atletas deixaram de responder algumas perguntas.

PERGUNTA 1 – Você já foi assediada por um profissional de futebol?

PERGUNTA 2 – Você já presenciou um caso de assédio?

Ressalvas às perguntas 1 e 2

No desenvolvimento da reportagem, percebeu-se que algumas atletas que responderam ao questionário possuíam uma percepção restrita do termo “assédio”. Aplicavam-no apenas às condutas mais graves.

Após uma explicação sobre a abrangência do termo, sobre as condutas que caracterizam o assédio (perseguição insistente e incômoda. A ameaça, a chantagem e ações verbais ou físicas feitas sem consentimento), algumas reconheceram episódios vividos ou presenciados durante a carreira. Tratavam estes, entretanto, de modo natural. “Aquela mesma coisa de sempre.” São, portanto, atitudes frequentes, que, assustadoramente, tornaram-se comum na rotina dessas mulheres.

Por conta disso, é feita a ressalva. Apesar de por si só elevados, os percentuais de atletas assediadas ou que presenciaram algum episódio de assédio são, certamente, maiores. Apesar disso, claro, o Superesportes manteve os resultados registrados na pesquisa inicial – os questionários foram aplicados antes da realização das entrevistas.

PERGUNTA 3 – Caso tenha presenciado algum caso de assédio, denunciou alguém?

PERGUNTA 4 – Você concilia a profissão de jogadora com outro trabalho ou faculdade?

“Faço faculdade também, de educação física. Estudo pela manhã e os treinos são à tarde. Fica um pouco cansativo, mas já acostumei. Se no futebol não der certo como jogadora, eu quero continuar trabalhando com o futebol. Terminar minha faculdade para ser preparadora física.”

Jéssica, 20 anos

lateral do Náutico (Ex-Santa Cruz)

“Faço faculdade de fisioterapia na Universidade Salgado de Oliveira, na Imbiribeira. Jogo no time da faculdade e no Náutico. Nos Aflitos, a gente treinava dois dias na semana. Depois, ia pra faculdade. Quando o horário do treino da faculdade e da aula não batiam, eu ia treinar. Geralmente, chego em casa às 21h40. Quando largo tarde, só às 23h10. O tempo que tenho para estudar é de madrugada. Então, eu estudo de madrugada. É complicado conciliar, mas são seus sonhos em jogo. E se o futebol não der certo, você já tem outra profissão para seguir.”

Jéssica, 18 anos

goleira do Náutico

“Elas veem que não têm o incentivo do esporte e terminam encontrando outras saídas. Muitas vão para educação física para conseguir entrar no mercado, porque sabem da pouca valorização, que a possibilidade de subsistência é mínima. É normal que elas terminem fazendo um movimento que os homens em geral não fazem, que é estudar. Vejo, talvez, um cenário de elas conseguirem uma inserção diferente. Mas é uma visão positivista. Porque as pessoas só acreditam em quem praticou. Então, quem vai pelo estudo, fica complicado de se inserir, virar uma referência ou chegar mais longe nessa carreira.”

Soraya Barreto

pesquisadora em futebol e professora da Universidade Federal de Pernambuco

PERGUNTA 5 – Você sofre preconceito de familiares ou amigos?

“O início (da carreira no futebol) para mim foi nas ruas, na educação física e em competições escolares. Sempre escondida dos meus pais. Eles nunca deixaram. Perdi inúmeras oportunidades. Para nós geralmente é assim. A primeira luta é dentro de casa. E para boa parte esta parece ser uma luta interminável e também a mais dolorida. Meus pais não aceitam até hoje.”

Gerlane Alves, 24 anos

volante do Náutico

“A minha mãe não gosta da ideia, um pouco menos minha irmã. Elas dizem que estou perdendo tempo, que não vai dar certo, mas nunca me impediram de jogar. Por uma parte até entendo elas, porque no futebol feminino tudo é incerto.”

Jéssica, 20 anos

lateral do Náutico (Ex-Santa Cruz)

“Quando eu era mais nova, nem meu pai nem minha mãe queriam me apoiar no futebol, porque falavam que não era coisa de menina, que menina não jogava futebol. Daí me colocaram no balé, judô, mas nada funcionou. Até que minha mãe resolveu apoiar. Quando eu tinha 8 anos ela me colocou na escolinha de futebol.”

Stefane, 18 anos

goleira do Team Chicago (Ex-Vitória de Santo Antão)

PERGUNTA 6 – Você sofreu ou sofre preconceito nas ruas?

“Dizem: ‘futebol é para menino’, ‘jogo de menina não presta’, ‘tu não vai ganhar nada com isso’. Sempre algo desse tipo. Ouvia isso de conhecidos, amigos, da família e pessoas de fora, quando me perguntavam o que eu fazia.”

Jéssica, 20 anos

lateral do Náutico (Ex-Santa Cruz)

“Eu ouvia muita coisa do tipo: ‘A mulher é para estar em casa lavando prato e fazendo comida’. Na época eu tinha entre 13 e 14 anos. Jogava em um colégio particular no Janga. Eu passava na rua e escutava isso.”

Débora, 24 anos

zagueira do Náutico

“Quando entrava na quadra e havia homens jogando, eu não podia jogar porque eles não deixavam. Só conseguia quando meus irmãos estavam presentes também. Até hoje é assim. Quando chego pra jogar, dizem que o time já está completo ou que eu vou machucar.”

Dahyanne Christinna, 22 anos

zagueira (Ex-Santa Cruz)

“Quando criança era mais pesado. Ouvia muita coisa e machucava. Era difícil lidar com isso, escutar que você é ‘maria macho’ por jogar um ‘esporte de homens’… Quando os meninos da minha escola iam jogar bola, eu pedia para jogar e eles não deixavam. Diziam: ‘Vai brincar de boneca, isso aqui é coisa de homem.’”

Laís Rodrigues, 18 anos

atacante do Vitória de Santo Antão

“Sofri muito, principalmente quando era mais nova. Eu nunca esqueci o que um cara falou para mim. A família da minha mãe é cristã, é adventista, guarda o sábado, e eu sempre cresci com os conceitos de Deus. Eu tinha 13 anos e um cara da igreja chegou em mim e falou que eu estava abandonando Deus para jogar futebol. Que Deus não ia me perdoar. Fiquei muito chateada. Eu pensava: ‘Mas eu só vou jogar bola’. Um homem pode até falar que não me quer ali, mas não deixe ninguém falar que você não é capaz.”

Juliana, 21 anos

atacante do Sport

PERGUNTA 7 – Você já foi ofendida pelas torcidas no estádio?

“Foi o pior jogo da minha vida. A torcida do América-MG me xingou desde o começo do jogo até o final. Ficaram gritando se eu era homem ou mulher. Me humilharam pela minha cor, pelo meu estilo, pelo corte do meu cabelo… Falaram coisas horríveis que eu até evito de falar porque foram palavras duras. Quando acabou o jogo eu fiquei sem chão. Não julgaram meu trabalho e sim meu físico, minha cor. Fiquei muito brava, chorei muito.”

Dahyanne Christinna, 22 anos

zagueira (Ex-Santa Cruz)

“No time da minha cidade não apoiavam a gente, porque participávamos de campeonatos e perdíamos. Aí começam as piadinhas. Calei a boca de muitas pessoas e hoje tenho orgulho de mim por nunca ter desistido.”

Laís Rodrigues, 18 anos

atacante do Vitória de Santo Antão

PERGUNTA 8 – Você já teve sua sexualidade questionada por jogar futebol?

A orientação sexual de Bianca*, autora da frase acima, não interessa a ninguém. Deveria ser respeitada qualquer que fosse. Nunca deveria ser motivo de consideração alheia. Mas Bianca é jogadora de futebol. A escolha da profissão, numa área predominantemente masculina, lhe suprime a dignidade. São pré-julgamentos sem razão de ser, que pressupõe a sexualidade de uma mulher somente pelo esporte que pratica. Um preconceito que vem principalmente dos homens. Agressões verbais que chegaram ao extremo de evoluir para ameaças do chamado ‘estupro de correção’. Uma suposta forma de “curar” a mulher de sua orientação sexual.

“É uma ideia absolutamente violenta, distorcida, equivocada. Parte de uma premissa de que uma pessoa homossexual está com um comportamento errado e que o estupro iria recolocar as coisas no lugar”, explica a doutora em psicologia clínica e especialista em estudos de gênero, Lígia Baruch.

Bianca não chegou a ser violentada fisicamente. Ameaças com esse tom, escutou diversas. O caso que mais lhe marcou aconteceu em Chã Grande, quando estava ainda no banco de reservas do seu time durante uma partida. Ao fim do primeiro tempo, quando caminhava em direção ao vestiário, ouviu gritos de um grupo de homens na torcida. “Eles ficaram falando: ‘Essa aí gosta de bola e eu tenho duas’, gritando. ‘Se tu for sapatão, vem que te mostro o que é um homem, eu te conserto na hora’. E rindo.”

*Bianca: nome fictício, a atleta preferiu não se identificar

“Estávamos nos preparando para o estadual. Nosso time é muito novo e o que chegaria mais perto do nível adulto seria jogar contra time masculino. Jogamos quatro amistosos e três times nos respeitaram muito. No último foi completamente diferente, eles chegavam para machucar e ficavam debochando, falando coisas do tipo: ‘mulher tem que estudar ou estar na cozinha’, ‘vagabunda’, ‘eu não levo dribles de menina’. Já passei por muitas situações assim, mas dessa vez foi diferente. Me doeu. Por que a gente tem que estudar ou estar na cozinha?”

Paloma Nair, 18 anos

meia atacante do Fluminense/Joinville SC (Ex-Vitória)

“Fomos convidadas para jogar em um clube de lazer e um cara do time não deixou a gente jogar. Disse que lá não era lugar de mulher e estavam no horário dele. Nós fomos convidadas, chegamos para jogar às três horas e esse cara ficou no meio do gramado falando que pagava e não ia sair de lá para meninas jogarem. Nós saímos do campo e esperamos até 18h30 para jogar.”

Larissa, 20 anos

Meia do Skill Red/Timon - PI (Ex-Náutico)

Visível e Invisível: a vitimização de Mulheres no Brasil

Pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública levantou dados sobre a violência praticada contra as mulheres no país. Entre os dias 11 e 17 de fevereiro de 2017, foram entrevistadas 2.073 pessoas, sendo 1.051 mulheres.

A cada hora, 503 mulheres foram vítimas de agressão física em 2016 (4,4 milhões no ano)

29% das mulheres brasileiras relatam ter sofrido algum tipo de violência nos últimos 12 meses

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sofreram ofensa verbal (12 milhões)

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sofreram ameaça de violência física (5 milhões)

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sofreram ofensa sexual (3,9 milhões)

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sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento (1,4 milhões)

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sofreram ameaça com faca ou arma de fogo (1,9 milhões)

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levaram um tiro (257 mil)

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sofreram assédio

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escutaram comentários desrespeitosos ao andar na rua (20,4 milhões)

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foram assediadas fisicamente em transporte público (5,2 milhões)

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foram agarradas ou beijadas sem o seu consentimento (2,2 milhões)

A reação diante das agressões

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procuraram uma delegacia da mulher diante das agressões

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procuraram ajuda da família

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não fizeram nada