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A jornalista Luce Pereira também é escritora. E das boas. Titular da coluna Diario Urbano, ela emprestou seu talento nestas duas áreas para a estreia da página Em Foco, uma das novidades do novo projeto editorial do jornal. A escolha não podia ser melhor. O desafio proposto para ela foi abordar a questão da banalização da violência a partir da morte brutal de um torcedor do Sport atingido por um vaso sanitário na calçada do estádio do Arruda. Um episódio tão surreal que poderia ser o tema de um conto. Mas aconteceu no Recife. Se aconteceu, Luce pode contar o que pensa. Sempre.

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Apocalipse social

A morte do torcedor atingido por uma bacia sanitária atirada de cima do Arruda acendeu o alerta: estaríamos perdendo o jogo?

“Fomos parar na boca do mundo. Não por termos dado um passo à frente na educação ou mesmo um exemplo de cidadania, de respeito ao ser humano ou à natureza. Não ganhamos notoriedade por combater ferozmente o preconceito nem criamos os alicerces de uma nova ordem onde todos sejam obrigados a zelar pela vida muito mais do que pelos bens. Não transformamos a gentileza em instituição – o que, enfim, nos colocaria ao lado da parte civilizada do mundo.

Muito pelo contrário.

Descemos um degrau na evolução, regredimos, liberamos a fera – e os olhos do planeta nos descobriram. Infelizmente, não como uma cidade do Brasil que vai sediar jogos da Copa, mas aquela em que torcedores assassinaram um também jovem torcedor atirando, do alto de um estádio, duas bacias sanitárias. Nos superamos na selvageria. Na verdade, nos inscrevemos de vez na dramática lista dos lugares onde a obsessão por este ou aquele time de futebol é capaz de atribuir a um homem e a uma barata o mesmo valor.

Saímos do prumo, descarrilamos, perdemos o senso. E estarmos apenas mortos de vergonha é muito pouco, não faz jus ao tamanho do perigo para o qual, todos os dias, fechamos os olhos. Porque, sim, a selvageria caminha para ser uma instituição mais forte do que o Estado.

E onde está o espetáculo, que em outras partes do mundo conseguiu até o improvável – unir inimigos históricos como negros e brancos da África do Sul? É irônico que a mesma paixão esteja hoje fomentando a violência e o ódio entre os jovens, como se a capacidade de discernimento deles estivesse sob controle de um inimigo invisível e poderoso. Podemos duvidar de muitos, mas só um deles resiste com a mesma força destruidora – as drogas.

São elas que vivem encomendando o réquiem de milhões de jovens enquanto desafiam a (in)capacidade dos governos de enfrentá-las. Sem um arsenal poderoso, criado a partir de políticas públicas sérias e precisas, eles, os governos, parecem a própria encarnação de Golias, a quem foi entregue uma espadazinha de madeira para enfrentar o grandalhão Davi.

E é assim que o grande circo de horrores prospera em detrimento do belo espetáculo. É assim que a enfermidade social cresce em níveis que tornam a cura uma possibilidade cada vez mais distante. Não seria exagero atribuir a esta enfermidade uma dimensão de apocalipse, porque a violência se supera, a cada dia se reinventa na arte de matar mais e melhor.

Nós – inclusive nós, imprensa – decidimos se queremos a volta do espetáculo ou se preferimos continuar vendo o futebol regredir ao nível dos sangrentos espetáculos medievais, que transformavam a morte em diversão para cavaleiros e plateias. Ainda: se reagimos ou continuamos, como no samba, esperando o mar pegar fogo para comer peixe assado”.