Em Foco 2504

O sonho da menina  Déborah, de 14 anos,  é ser bailarina clássica profissional; e tudo que ela precisa é de alguém que aposte nesse sonho. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco deste sábado, por Silvia Bessa. A foto que ilustra a página é de autoria de Guilherme Veríssimo

A bailarina

Silvia Bessa  (texto)
Guilherme Veríssimo  (foto)

A música mais linda do mundo é aquela que emoldura os sonhos adolescentes. É quase sempre uma harmonia romântica porque tem pouco passado e mais futuro. Os acordes que fazem Déborah Katherine Souza fechar os olhos de emoção são do famoso violinista André Rieu – o das valsas vienenses. As valsas a remetem à dedicação ao balé, desde a época em que ia de ônibus aos 3 anos com a mão agarradinha à da avó, dona Enedina, até a escola de dança perto da maternidade da Encruzilhada, no Recife, e a conduzem a uma vida adulta. “Sempre adorei o balé. Meu destino é ser bailarina clássica”, afirma Déborah, 14 anos, enquanto mostra saias de filó de quase-bebê e narra as emoções que já causou no trio que diz para ela – com gestos – “vá, menina, corra atrás daquilo que quer”.
Que sorte tem Déborah. Filha de família humilde e persistente, mora numa casa miúda, numa espécie de vila no bairro de Campo Grande, Zona Norte do Recife. A mãe, Edna, trabalha no comércio de dia; à noite, em finais de semana e feriados costura para fora para ajudar a pagar contas e dar alegrias à filha. O avô por parte de mãe, seu Aurélio, é vigilante aposentado, assim como a avó, dona Enedina, que era da produção de uma fábrica de água sanitária. Não foi uma nem duas vezes que os três fizeram manobras para garantir que a garota continuasse a dançar. Bancaram centenas de passagens de transportes coletivos, taxas de apresentações e despesas com vários tutus da bailarina.
“Quando chego na casa de meu avô, ele pergunta: ‘Tem aula hoje?’. Se respondo que sim, ele sorri e sempre dá um dinheiro para o lanche”, conta. “Nas apresentações de final de ano, meu marido faz questão de levar todo mundo de táxi e chora de alegria quando vê a neta”, completa a avó, envaidecida. A mãe, Edna, é feita de satisfação. Guarda tudo que é foto, da época em que a menina “ainda nem sabia fazer a pose direito”. A garota diz que o balé foi primeiro o sonho dos três; depois, virou o dela.
Déborah é orgulho dessa família. Ela reluz por onde anda nas ruas dos bairros da periferia: 1,84 metro de altura, 48 quilos, corpo esguio, sorriso timidamente encantador. “Claro que todo mundo pergunta se sou bailarina”, responde, ao comentar sobre a curiosidade alheia. No pescoço, pingente de bailarina. Na bolsa que guarda a roupa da aula de balé aos sábados, uma pintura colorida de sapatilhas de pontas. É, ela quer ser bailarina. Começou a preparação aos 3 anos com duas aulas na semana na escolinha de dança particular da Encruzilhada, paga com todo sacrifício. Aos seis, sete anos, integrou-se ao grupo das irmãs Ilka e Rejane Chár, conhecido como Arte com o Corpo.
Faltavam barras, espelhos para treinamento dos passos, mas nunca empenho das professoras e alunas, que contavam com colaborações eventuais de diretores de colégios públicos e privados para a cessão de salas vazias. Nunca foi fácil. “São cinquenta alunas hoje. Algumas filhas de empregadas domésticas, faxineiras… muitas precisam de até quatro passagens para chegar à academia”, relata Ilka, que ministra um aulão por semana – aos sábados – à turma de bolsistas, desde fevereiro abrigada no Nefertiti Stúdio de Danças, em Casa Caiada (Olinda). “Lidamos com muitas dificuldades, mas digo que somos um grupo genérico com o mesmo efeito dos originais”, brinca a professora, que neste domingo leva o grupo para se apresentar no Teatro Ribeira, em Olinda, a partir das 18h.  “O que fazemos é a alfabetização do balé. Déborah está conosco desde pequena e é muito esforçada”, afirma.
Desde que vi Déborah pela primeira vez há dois meses só consigo pensar que essa menina, com corpo e determinação de bailarina, precisa de patrocínio para seguir o seu sonho adolescente. Ela anseia por uma academia de ponta que acredite nela. Sua história pede que alguém custeie o transporte até as aulas, que aposte na esperança de uma menina negra, pobre, que fecha os olhos para ouvir valsas vienenses.
Se eu fosse você, caro leitor, acessaria o YouTube, ligaria alto o som do computador ou do celular e ouviria de olhos fechados André Rieu, imaginando como seria essa menina da periferia do Recife dançar balé clássico como profissional.