Em Foco 1706

Dois universitários caem de ônibus em movimento, num espaço de menos de dois meses, morrem e acendem debate em torno da falta de segurança no transporte público. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta quarta-feira, por Luce Pereira. A imagem que ilustra a página foi produzida pela editoria de arte do jornal a partir de fotos de Roberto Ramos e João Velozo.

Uma viagem sem volta

Luce Pereira (texto)

Os ônibus que fazem parte do transporte público do Recife são ruins. Por vários motivos são ruins – inseguros, impontuais, desconfortáveis, higiene deficiente, funcionários sem nível de capacitação e de renda satisfatório. Daí por que eles não apenas acentuam a baixa estima dos usuários – que não se sentem vistos nem respeitados – como matam. São dois casos de jovens a perder a vida em um espaço de apenas um mês e dez dias, sem que ao menos o primeiro – Camila Mirele Pires da Silva – tenha tido o inquérito policial concluído. “Existe um trâmite burocrático”, justificou o delegado Newson Mota, que por causa disso não quis falar em prazo para terminar o trabalho. A única conclusão possível, então, é que só familiares e amigos têm pressa; a lei, não.
Nas redes sociais, os comentários são os mais raivosos, alimentados pela sensação de impunidade que o segundo caso, ocorrido no fim da noite de segunda-feira, robusteceu. Harlynton dos Santos caiu depois de conseguir colocar os pés no primeiro degrau de um ônibus da empresa Vera Cruz. O motorista teria dado partida e ele, sido arremessado sobre grades do terminal do Cais de Santa Rita, sofrendo politraumatismo (fratura na bacia e numa costela).
Camila vinha de aulas no curso de biomedicina (UFPE) e tinha 18 anos. Harlyngton (estudante de biologia/UFPE) do cinema, e tinha 20. Provavelmente acalentavam muitos sonhos, porque, nesta idade, eles são o combustível para a crença de que se caminha em direção ao futuro. Ninguém com tão pouco tempo de mundo duvida que o amanhã não vá existir, está longe de desconfiar que a vida pode ser interrompida de forma tão boba ou grosseira.
Mas o histórico deste segmento do transporte coletivo, no Recife, remete a situações tão recorrentes de insegurança que melhor seria reconsiderar. Passou a fazer medo e não de agora. Há quanto tempo a precariedade do serviço é amplamente discutida e divulgada, sem que haja as mudanças necessárias? Décadas. Elas demandam investimentos por parte dos empresários, fiscalização e cobrança por parte do poder público, no entanto os dois lados se comportam como se a integridade física dos usuários não dependesse deles, mas da sorte, espécie de salve-se quem puder.
Há que lembrar, no entanto, que novos mecanismos ampliaram a voz do cidadão e ele já não se mostra tão passivo na hora de cobrar direitos, assim como as empresas prestadoras do serviço não perdem de vista a fórmula para manter sua saúde financeira. São situações desiguais, mantidas ou facilitadas por uma impunidade, que – é óbvio – repousa sob barril de pólvora. A cada reajuste anual de tarifa, há sempre a possibilidade de os acontecimentos desfavoráveis serem colocados na balança e a conta resultar numa intolerância aguda. Como aceitar que se mostre impossível fugir de novos preços quando não há como fugir de ônibus superlotados como os da Metropolitana que fazem a linha Barro/Macaxeira, num dos quais viajava Camila?
As mortes e os transtornos enfrentados por quem usa os ônibus do sistema fazem a população olhar para as estações de BRT (muitas inconclusas) como se morresse de sede em frente ao mar. Elas parecem dizer que seria tudo mais simples e justo se cada um fizesse a sua parte, dando na medida em que recebe.