07-10

Supremo julgou ADIn contra lei do Ceará que regulamenta a atividade como prática desportiva e cultural.

Luce Pereira (texto)
Alcione Ferreira (foto)

É muito passível de questionamento qualquer teoria que se apoie em tradição e/ou cultura para justificar maus-tratos a animais. Passa da hora de dizer basta. Já evoluímos minimamente como seres humanos e assim sendo nem deveríamos mais insistir em barbáries que se escondem sob velhos argumentos. Por isso, há que comemorar o voto de desempate da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, ontem, considerando inconstitucional a prática da vaquejada. “Sempre haverá os que defendem que vem de longo tempo, que se encravou na cultura do nosso povo. Mas cultura também se muda e muitas foram levadas nessa condição até que se houvesse outro modo de ver a vida e não só a do ser humano”, disse ela, contrariando cinco colegas – Luiz Fachin, Teori Zavascki, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Dias Tofolli. A decisão do STF foi em resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) movida contra a Lei 15.288/2013, do estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural.
As discussões no STF sobre o assunto aconteciam há meses. Numa ponta do processo, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, querendo o fim da disputa (altamente desigual) entre peões e bois; do outro, representando a Associação Brasileira de Vaquejadas, o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, que costuma aparecer na cena da Operação Lava-Jato defendendo os interesses de acusados ou réus famosos. Em junho, enquanto o procurador resumia a questão como uma “injustiça contra os animais”, Castro se valia das origens no campo (o pai era boiadeiro em Minas Gerais) para dizer que a princípio era contra as vaquejadas, mas depois entendeu tratar-se de “uma prática cultural importante” para incrementar a economia no Nordeste. Neste momento, sacou uma “realidade” e número para ilustrar o raciocínio: seria o segundo esporte mais popular no país, só perdendo para o futebol, com cerca de 4 mil eventos do tipo por ano, que movimentariam, no mesmo período R$ 14 milhões.
A propósito, o ministro Gilmar Mendes elegeu o aspecto econômico para votar contra a proibição. “Estamos falando de 200 mil empregos. E a lei do Ceará visa exatamente que essa prática se dê com padrões civilizatórios, com tratamento adequado”. Até onde se sabe, nenhum padrão é capaz de diminuir a desigualdade na disputa, dores e estresse causados aos animais. Parece um raciocínio que caminha na contramão de uma tendência mundial, pois se apenas esta via devesse ser levada em conta, as touradas continuariam a reinar absolutas na Europa. Elas também eram uma tradição fortíssima e também perderam a força ante o clamor popular contra o sofrimento imposto aos touros selecionados para os torneios.
Só ilustrando a rachadura provocada pelo assunto no STF, desde que Janot o fez bater à porta da casa, o julgamento da ação no plenário havia sido suspenso após pedido de vista do ministro Dias Toffoli, em junho. E, por aquele tempo, o ministro Luís Roberto Barroso apresentou voto-vista, acompanhando o relator pela procedência da ação. Embora tenha reconhecido a importância da vaquejada como “manifestação cultural regional”, deixou claro, no entanto, que tal fator não tornava a atividade imune a outros valores constitucionais, em especial ao da proteção ao meio ambiente. A ação, julgada com pedido de medida cautelar, apontou que laudos técnicos teriam comprovado a ocorrência de danos nos animais.
É uma questão de coerência: ao acatar todos os argumentos mostrando as vaquejadas como uma prática que, mesmo divertindo e dando lucro, expõe os animais a evidente sofrimento, a Suprema Corte deveria se manifestar definitivamente contra a existência delas. Como ressaltou a ministra Cármen Lúcia, “cultura também se muda”. E muitas vezes, mudando, ajuda o mundo a ser melhor e mais justo.