Por Jornal da USP
Para aqueles que acreditam que poesia é só ficção, aqui está um caso de pesquisa criteriosa sobre um fato histórico em forma poética: Romanceiro da Inconfidência, da escritora carioca Cecília Meireles (1901-1964), livro que neste ano entra para a lista das obras obrigatórias da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), organizadora do exame para ingresso na Universidade de São Paulo (USP).
Segundo a professora Norma Seltzer Goldstein, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em Cecília Meireles, “a poetisa, como gostava de ser chamada, dedicou dez anos da sua vida para consultar fontes históricas e recuperar todo o conjunto de acontecimentos que envolveu a Inconfidência Mineira”.
Além disso, a escritora estudou as formas poéticas medievais, escolhendo o formato romanceiro, poema narrativo, com um assunto histórico e de caráter popular. Outra extensa pesquisa, diz a professora, envolveu os poetas do Arcadismo, um movimento literário contemporâneo aos eventos da Inconfidência Mineira, que tem entre suas características o bucolismo, a idealização da natureza e o interesse por problemas sociais. “E, dentre os árcades, ela se deteve sobretudo em Tomás Antonio Gonzaga, do qual ela retoma o estilo, alguns versos e alguns termos”, relata Norma, autora de vários trabalhos sobre Cecília Meireles, entre eles Roteiro de Leitura do Romanceiro da Inconfidência, publicado em 1998 pela Editora Ática e atualmente esgotado.
“Quando lemos Romanceiro da Inconfidência, percebemos um diálogo com três épocas: a época da autora, que escreve em meados do século 20, a época dos fatos relatados, em meados do século 18, e a era medieval, que é o berço do gênero romanceiro, um relato popular em versos”, destaca a professora, acrescentando que há ainda uma quarta época: a do leitor de hoje, no século 21.
Mas por que Cecília Meireles não escolheu o poema épico? A professora explica que nesse gênero é exigida a presença de um herói e Tiradentes foi um mártir. Para Norma, a imagem do inconfidente alimentou os movimentos posteriores em razão do mito que se tornou ao assumir sozinho a culpa pela revolta contra a Coroa, inocentando todos os outros envolvidos nela. “Ele foi preso, enforcado em praça pública, e seu corpo foi esquartejado e esparramado por várias partes da cidade. Essa não era a figura de um herói. Mas, por outro lado, tornou-se um mito da liberdade, e acabou sendo um mártir heroico. Mas o relato de fatos populares caberia muito melhor no gênero romanceiro do que no gênero poema épico”, ressalta a professora.
Em relação à composição dos poemas, Norma Goldstein destaca que, no romanceiro em geral, os poemas são curtos e as rimas podem ser regulares ou irregulares. Na obra de Cecília Meireles, destaca a professora, há uma grande quantidade de composições em versos curtos, com ou sem rimas, com rimas regulares e irregulares, colocadas em posições que não seguem uma métrica nem simetria. A obra se organiza em várias partes: romances, cenários e falas. Como explica a professora, é um conjunto de romances basicamente narrativos, entremeados de falas, uma espécie de manifestação do narrador que se dirige a personagens por vezes, e cenários descritivos, que levam o leitor à Vila Rica – hoje Ouro Preto, em Minas Gerais – do século 18. “Em Ouro Preto, temos a impressão de estar vendo alguns dos cenários da Cecília Meireles”, complementa.
Livro traz Tiradentes como uma “figura de sonho”
Encabeçando o movimento de libertação da colônia brasileira contra a metrópole portuguesa, o dentista e alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, procurava atrair mais pessoas para a conspiração, mas os planos foram abortados antes de colocados em prática por causa do delator Joaquim Silvério dos Reis, que denunciou a conspiração dos inconfidentes, em 1789.
Como reitera a professora Norma Goldstein, o mais importante sobre a figura de Tiradentes é que ele assumiu a culpa de tudo para salvar as outras pessoas. Assim, tem-se a figura positiva de Tiradentes e a figura negativa de Silvério dos Reis. Segundo a professora, apesar de a Coroa portuguesa sair vitoriosa, desbaratando a conspiração e prendendo o responsável, Tiradentes ganhou a simpatia do povo brasileiro, criando um paradoxo na história. “O morto ganhou a simpatia dos brasileiros de todas as épocas, tornou-se mito e bandeira de todo movimento libertário posterior, com o lema Libertas quae sera tamem (‘Liberdade ainda que tardia’), que ecoa por toda a história do Brasil”, conta.
A professora cita um trecho da Fala Inicial do Romanceiro da Inconfidência, que mostra a figura de sonho que seria Tiradentes:
“O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,
vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.
Eloquência da simples despedida:
‘Adeus! que trabalhar vou para todos!..'”
(Esse adeus estremece a minha vida.)
Cecília Meireles
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