A “sorte” de voltar atrás
Não tivesse revisto a decisão de abandonar a natação, Adriana Salazar não estaria nesta reportagem. Cansada de “contar azulejos”, como resume a exaustiva e solitária rotina de nadadora, ela havia deixado a piscina pouco antes dos Jogos Olímpicos de Seul. Foram seis meses de intervalo até que a saudade a levou de volta às águas. O talento fez com que ela superasse o tempo parado. Em uma tentativa, ela conseguiu o índice e colocou o seu nome na história dos Jogos. Trouxe, na bagagem, histórias que nunca teria vivido caso não tivesse voltado a “contar azulejos”. Histórias que ela lembra na série Relíquias Olímpicas, que conta a história das pernambucanas e pernambucanos que possuem o DNA olímpico no sangue, nas lembranças.
Dos quatro anos de idade até a conquista do índice olímpico para os Jogos de Seul, em 1988, Adriana Salazar precisou se reinventar. Aprender a lidar com a solidão que acompanha a rotina dos nadadores. A contagem de azulejos – como eles costumam dizer –, massacra, desestimula. Mas foi justamente nesta solidão que essa pernambucana de 1,76m e costas largas se encontrou. Triunfou nas piscinas mundo afora. Foi única e soberana em Pernambuco. No auge da carreira, na década de 1980, era apenas ela. E somente ela.
“No começo não gostava de treinar. Só que as coisas foram acontecendo, os resultados aparecendo… Tudo isso era fruto do que eu fazia nos treinos. Mas era chato treinar. Tinha muita cobrança que, por causa da pouca idade, não entendia. Hoje eu vejo que era totalmente compreensível”, diz.
A evolução foi impressionante. Com oito anos, já fazia parte da equipe de natação do colégio onde estudava. Rapidinho, estava treinando sob a batuta do exigente e competente treinador João Reinaldo, o Nikita. Seu primeiro contato com a seleção brasileira veio em 1978. Após disputar um Brasileiro juvenil, no Recife, e ficar em primeiro nos 100m borboleta – no início da carreira, ela nadava borboleta e medley – foi convocada para um período de treino na Universidade de Miami, nos Estados Unidos.
No ano seguinte, ganhou o Brasileiro da categoria e, com isso, a chance de disputar o primeiro campeonato sulamericano. Foram dez anos defendendo a seleção nacional. Até que decidiu parar.
A VOLTA
A desistência está diretamente ligada à rotina da natação. Adriana estava cansada. “Eu estava nadando praticamente sozinha. Fatinha (Maria de Fátima Vieira, ex-nadadora e companheira de Adriana na equipe de Nikita) tinha parado. Tinha combinado com umas amigas, de São Paulo, que após o Troféu Brasil, que foi no Rio de Janeiro, tiraria uns dias de férias. Estava realmente precisando descansar”, relembra Salazar.
Esses eram os planos da atleta, não da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), que agendou compromissos para o mesmo período de descanso da pernambucana. “De última hora, inventaram uma competição com a presença de atletas estrangeiros. Queriam que eu participasse a todo custo. A pressão foi grande. Caiu até sobre meu irmão Duda (Eduardo Salazar), que na época era presidente da federação estadual de natação. Não nadei e fui para São Paulo”.
Era fevereiro de 1982 na Terra da Garoa. Durante os 15 dias de estada, o desejo de abandonar a piscina só aumentou. A adolescente Adriana Salazar, então com 17 anos, voltou para casa decidida. “Estava de saco cheio mesmo. Pedi desconvocação de uma Copa Latina, no México, e no dia da reapresentação em Nikita, eu fui de calça jeans e não levei maiô. Disse a ele que já tinha nadado tudo.”
Seis meses depois, veio a reconsideração. Depois de uma edição dos jogos universitários, ela foi convencida pelas amigas a retornar. “O desejo de competir brotou rapidinho. Amava fazer aquilo”, explica ela. Retomou para buscar o sonho olímpico. Foi recompensada. Por esforço próprio, Adriana alcançou o índice para os jogos de Seul. No limite. Na última tentativa, que ocorreu na piscina do Fluminense, no Rio.
“Tinha dia que chegava em casa chamando Nikita pelo nome de batismo, João Reinaldo. Minha mãe já sabia que tinha acontecido algo. Muitos treinos era somente Nikita e eu, eu e Nikita”
O arrepio da chegada em Seul
A aclimatação para a Olimpíada, que ocorreu sob os olhares atentos do público, já que nas duas últimas edições haviam ocorridos boicotes – Moscou, 1980, e Los Angeles, 1984 – foi feita no Recife e em João Pessoa. “Chegar em Seul foi de arrepiar. Já tinha ido a Pan-Americanos, mas Olimpíada é um mundo. É extraordinário. E aquela foi especial”, revela.
No dia dos 50m livre, prova que se tornou sua especialidade, a atleta diz que acordou bem, como de costume. “Ouvi uma musiquinha e não estava nervosa. Nadei na série somente da recordista mundial Kristin Otto, da Alemanha. Fiquei na 17ª posição. Por pouco não peguei final B. Valeu muito a pena.”
BOICOTE
Uma das lembranças mais marcantes de Adriana em relação aos Jogos de Seul foi o boicote organizado em protesto à invasão da União Soviética ao Afeganistão, em 1979. Os soviéticos visavam destituir o governo de Cabul, que praticava um socialismo ilegítimo aos olhos da URSS. Mais de 50 nações seguiram os Estados Unidos no boicote.
O Brasil não estava entre elas. Porém, o país fez questão de mandar alguns atletas também para as “Olimpíadas do Boicote”, evento organizado às pressas na cidade norte-americana da Filadélfia para que as nações do bloco que aderiu ao boicote tivessem uma alternativa aos Jogos de Moscou. Em 1984, foi a vez da União Soviética dar a resposta, liderando um grupo de 15 nações que boicotaram a Olimpíada realizada em Los Angeles, há exatos 32 anos.
[ Os Jogos de Seul
17 de setembro e 2 de outubro de 1988
países participaram (número recorde, até então)
atletas
eram mulheres
[Na memória Adriana Salazar // Ex-nadadora
Um momento inusitado no parque aquático de Seul faz Adriana Salazar soltar uma boa risada. Enquanto nadadores ainda lutavam por seus melhores tempos, eis que chega às arquibancadas o astro de Holllywood Arnold Schwarzenegger. O alvoroço estava formado. “Lembro-me que ele nem era muito fortão, bombado. Mas já era bastante conhecido. Todo mundo, claro, queria vê-lo de perto”, conta.
COMPANHIA ILUSTRE
Depois de ver o nadador russo Vladimir Salnikov vencendo a prova dos 1.500m, na noite do dia seguinte, tê-lo como vizinho na mesa do jantar foi uma sensação indescritível para Adriana. “Quando ele entrou no refeitório da vila (olímpica), todos que estavam lá ficaram de pé e o aplaudiram. Foi lindo! Uma cena emocionante”, recorda, empolgada.
BEN JOHNSON
Em 1988, o jamaicano naturalizado canadense Ben Johnson surpreendeu o mundo ao conquistar a medalha de ouro na prova dos 100m rasos com uma marca até então nunca atingida: 9s79. Dois dias depois, flagrado no exame antidoping, o atleta perdia a medalha para Carl Lewis, seu grande rival – o exame atestou positivo para o estanozolol, substância que aumenta a massa muscular e o desempenho e proibida pelas autoridades do esporte.
A história ficou marcada na lembrança de Adriana como a lembrança mais triste dos Jogos. “Fui para o estádio olímpico vê-lo ganhar a prova dos 100m rasos. Dois dias depois, vimos ele saindo da vila olímpica escoltado, por ter sido pego no exame de doping. Aquilo me deixou mal. Decepcionada”, relata.