A caderneta de Nikita
Peça a um atleta para definir o sentimento de participar de uma Olimpíada. Ele vai pensar por alguns segundos. As palavras vão faltar por instantes diante do turbilhão de emoções, de lembranças. A resposta é difícil. O desafio de reduzir a experiência em palavras é gigantesco. Mas é possível. Aos poucos, sem amarras cronológicas, a sequência temporal dos fatos. Com pausas de silêncio, sorrisos que denunciam alguma recordação resgatada por uma expressão. Gestos e palavras captadas pelo Superesportes que inicia, neste domingo, a pouco mais de 70 dias do início dos Jogos do Rio, a série Relíquias Olímpicas. Nela, pernambucanos que já estiveram numa Olimpíada – ou mais de uma – contam suas histórias. Com detalhes. Com sentimento. Com a certeza absoluta de terem vivido um privilégio limitado a poucos. O ápice da vida de qualquer atleta.
Quando era atleta, João Reinaldo da Costa tinha o hábito de anotar toda a sua rotina numa pequena caderneta. O que fez pela manhã, à tarde, à noite. Quanto treinou, o que sentiu, para onde foi. É folheando um desses pequenos cadernos que ele, na época já conhecido como Nikita, lembra de quando foi à Olimpíada de 1968, na Cidade do México. As anotações trazem à tona uma série de fatos, contados com detalhes por ele.
Nikita lembra com clareza da maratona que passou na viagem até a Cidade do México. Aos 21 anos, disputou sua primeira e única Olimpíada como atleta. Conta que dirigentes e candidatos a medalhas foram ao México de avião comercial, com total conforto. Ele e boa parte da delegação tiveram que viajar numa aeronave cedida pela Força Aérea Brasileira (FAB), que decolou do Rio de Janeiro às 8h, parou em São Paulo, Brasília e chegou às 18h em Manaus. No dia seguinte, embarque às 15h para uma parada no Panamá e, enfim, chegada às 19h (horário local) no México.
Desde o início da década de 1960, Nikita se destacava como nadador. Treinava no Clube Português que, na época, ainda nem tinha uma piscina em tamanho olímpico. Era o seu próprio técnico. Por meio da caderneta, mantinha a disciplina. Anotava todo o planejamento e o que era feito. “Até hoje recomendo aos meus atletas a fazer essas anotações. Ajuda a ter responsabilidade. Se estava previsto para nadar cinco mil metros, eu tinha que nadar cinco mil metros. Se não fizesse, eu estaria me enganando”, conta.
A vaga na Olimpíada foi garantida no Rio de Janeiro, onde Nikita fazia períodos de treinamento. Escolheu o Botafogo, pois queria estar sob a tutela do técnico da seleção brasileira, Pavel. Especialista no estilo borboleta, pouco comum na época, Nikita garantiu vaga no revezamento 4×100 medley. Superou a água gelada e as viroses que o acometiam antes das competições. Anos depois, se convenceu de que elas eram de fundo psicológico. “Os médicos falavam na época, mas eu não acreditava nesse negócio de doença psicológica. Quando estudei isso, descobri que, realmente, essas gripes que eu pegava eram fruto da pressão psicológica”, revela.
O Brasil estava longe de ser uma força olímpica na natação. As condições de treino no país estavam muito atrás de potências como os Estados Unidos. Mas um fator complicou ainda mais a condição da equipe brasileira: a altitude da Cidade do México. Nikita sentiu os efeitos antes dos primeiros treinos. “Quando cheguei no prédio da Vila Olímpica, nosso apartamento ficava no sexto andar. Achei de pegar minha mala para subir pela escada mesmo. No primeiro lance, parei e coloquei a língua para fora. Não aguentei”, lembra.
Após os treinos, embora tenha se impressionado com a piscina construída para os Jogos, Nikita chegou a temer não conseguir completar a prova. “Eu era nadador de borboleta, que é o mais cansativo que existe. Até o dia da competição, não tinha certeza se eu ia conseguir fazer os 100m. Ao contrário dos países desenvolvidos, não passamos por nenhuma adaptação à altitude”, lamentou o nadador.
DESBRAVADOR
Nikita foi o primeiro nadador do Norte/Nordeste a participar de uma Olimpíada. Por opção, decidiu parar ali. Após competir no México, elegeu outras prioridades na vida. Competiu por mais um ano, ao mesmo tempo em que começou a estudar Educação Física. Voltaria a outras olimpíadas anos mais tarde, como treinador de Joanna Maranhão. Estar do lado de fora da piscina, orientando, era algo para o qual João Reinaldo estava predestinado. “Do ponto de vista do esporte, a Olimpíada é uma grande experiência. Sou uma pessoa curiosa, centrada, observo tudo. Fiz isso quando participei, assim como em todas as competições que ia”, relata.
“A Olimpíada é uma grande experiência. Sou uma pessoa curiosa, centrada, observo tudo”
Conversas gravadas
Entre as lembranças guardadas da Olimpíada por Nikita, chamam atenção fitas de áudio gravadas por ele na vila olímpica. As mensagens, registradas em gravadores que ficavam em cabines parecidas com as telefônicas, eram enviadas por correio aos familiares dos atletas no Brasil. Em 1968, esse era o tipo de comunicação colocada à disposição durante os Jogos Olímpicos.
As fitas foram digitalizadas para um documentário que Nikita participou há alguns anos. Os áudios trazem o relato de um Nikita detalhista, como sempre, e bem humorado. Ele fala sobre a vila olímpica, da maratona aérea até chegar no México, da altitude. “A vila olímpica é negócio de cinema. Você não pode nem imaginar. São 30 edifícios de dez andares mais ou menos, com jardins, piscinas, auditórios…”, fala o nadador.
CENSURA
Chama atenção uma história contada por Nikita sobre um áudio que não ficou gravado. Em 1968, o Brasil atravessava o período da ditadura militar. Logo, as comunicações dos atletas eram revisadas ao chegar no Brasil. Nikita só percebeu isso algum tempo depois, após sua chegada. Conversando com o pai, notou que ele não estava ciente de uma passagem contada por ele.
“No México, peguei um taxista que me disse que era vizinho de um brasileiro. Quando ele me disse o nome, mal acreditei na coincidência: Francisco Julião. Ele tinha sido inquilino de papai no Recife e estava morando no México. Numa das gravações, falei dessa história a papai. Só que, quando fui ouvir, justamente essa parte, havia sido apagada”, conta.
O trecho a que Nikita se refere na história, por mais inocente que tenha sido, foi apagado pelos censores da fita, mas não da memória dele.
Francisco Julião havia deixado o Recife e o Brasil por conta da ditadura. Ele foi líder das Ligas Camponesas (organizações cujo objetivo era lutar pela distribuição de terras e os direitos para os camponeses, em 1955), além de deputado federal por Pernambuco em 1962. Em 1964, ano do golpe militar, foi cassado e preso. Em 1965, se exilou no México, de onde só retornaria em 1979, anistiado. E, durante este tempo, foi monitorado pelo governo brasileiro.