Segunda matéria sobre a série acessibilidade não acessível. Aqui o deficiente visual Júlio Tabosa mostra as dificuldades de circulação em um trecho “tecnicamente” acessível. Matéria publicada no dia 03 de agosto de 2009.
Tânia Passos
taniapassos.pe@dabr.com.br
Um teste simples de equilíbrio. Ficar de pé com uma perna só e abrir os braços. Tente fazer o mesmo de olhos fechados e irá perceber o grau maior de dificuldade, mesmo sem sair do lugar. Imagine então andar pelas ruas da cidade sem ter a mínima ideia de onde está pisando e o que vai encontrar pela frente.
Segundo o censo do IBGE de 2000, em Pernambuco eram mais de 900 mil deficientes visuais, dos quais cerca de 9.340 eram cegos e 146 mil tinham uma grande dificuldade permanente de enxergar. Estes dois últimos grupos estão à mercê das inúmeras barreiras que dificultam a acessibilidade.
Sejam buracos, orelhões, árvores e as temíveis bocas de lobo. Reduzir o abismo que separa a acessibilidade plena da realidade das ruas é um dos desafios dos gestores públicos e de todos nós.
Foi aos 19 anos que Júlio Tabosa, hoje com 52, perdeu a visão. Ele chegou a passar cinco anos trancado dentro de casa com medo do mundo. Mas decidiu ir à luta. Fez um curso de locomoção na Associação Pernambucana dos Cegos (APEC).
Hoje preside a Associação Beneficente dos Cegos de Pernambuco, uma casa de apoio aos cegos do interior do estado, na Estrada dos Remédios, no bairro de Afogados.
Para se deslocar na área urbana, utiliza o transporte público. Sem nenhum tipo de ajuda, Júlio concordou em fazer uma espécie de “ensaio sobre a cegueira” pelas ruas do Recife. E assim como no romance do escritor português José Saramago, ele sabe que é preciso confiar no outro
“Por mais que o cego aprenda a caminhar sozinho pelas calçadas, precisa confiar nas pessoas. Seja para pegar o ônibus certo ou atravessar o semáforo. Sempre aparece alguém para ajudar, mas há também os que dão informação errada. Se possível, é melhor confirmar com mais de uma pessoa e confiar”, ressaltou.
O ensaio pelas ruas teve início no Corredor Leste-Oeste, uma das mais recentes e importantes obras do município no sistema viário da cidade contemplada com acessibilidade.
O mesmo local onde o cadeirante Edvaldo Gonçalves, da primeira matéria da série, já havia apontado dificuldades nas rampas do entorno da Praça do Derby e na falta de continuidade dos acessos. Júlio iniciou sua caminhada no mesmo ponto da praça.
E assim como ensina o manual de locomoção para cegos, procurou a linha do canto esquerdo da calçada e seguiu em frente com a segurança de quem parece enxergar tudo.
Poucos metros à frente, o primeiro obstáculo. Um banco de concreto em um espaço que deveria estar livre. Mesmo com a bengala, quase tropeçou. Um susto para quem observa e só mais uma barreira para Júlio contornar e seguir em frente. Dessa vez, um pouco mais pela direita, pois já não parecia tão certo de que o caminho à sua esquerda estivesse livre.
Encontrou pela frente um orelhão, sem sinalização no piso. A batida foi inevitável. Mais na frente, ao lado de uma parada de ônibus, mais dois orelhões. Um ao lado do outro. Júlio tentou livrar o primeiro, mas esbarrou.
Ele contornou pelo lado contrário e deu de cara com o segundo. Foram três orelhões e três batidas emuma mesma calçada. Um sofrimento desnecessário se a acessibilidade tivesse sido respeitada. E o mais grave, em um espaço que em tese já recebeu ações e investimentos para esse fim.
As barreiras nas calçadas não são o maior temor dos cegos. O principal inimigo deles são as bocas de lobo, verdadeiros precipícios que surgem do “nada” pelo caminho. Uma lição que Edson José de Amorim Oliveira, 18 anos, já aprendeu. “Certa vez eu caminhava pela Avenida Guararapes com uma colega cega e caí em uma boca de lobo. Ela me ajudou a sair. É difícil encontrar um cego que não tenha sido vítima de uma boca de lobo”, revelou.
A preocupação é tanta que Edson faz um apelo desesperado. “Se não fizessem nada em acessibilidade e tapassem todas as bocas de lobo nós nos sentiríamos mais seguros”, desabafou o jovem, que chega ao extremo de exigir tão pouco quando tem o direito legítimo a tudo.
Remoção – Em nota, a Secretaria de Serviços Públicos da Prefeitura do Recife informou que os orelhões da praça vão receber pisos táteis e que os técnicos da Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb) vão estudar uma forma de sinalizar os bancos das calçadas.
Especialista em acessibilidade, a arquiteta do Crea Ângela Carneiro tem outra sugestão. “A solução é remover os bancos da calçada. Eles podem ficar no interior da praça, mas não na calçada que deve estar livre de obstáculos”, explicou.