Não é um ensaio sobre a cegueira

Cegue

Na verdade, é uma resposta à cegueira.

Nas mesas redondas nacionais em programas de televisão, quase sempre um comentarista no cantinho da bancada solta a seguinte pérola na hora da exibição dos gols dos campeonatos estaduais do Nordeste:

“As torcidas nordestinas são um espetáculo. Sempre lotam os estádios!”

Afirma de forma efusiva. Soa como um elogio…

No fundo, é a limitação do conhecimento do cidadão sobre o futebol jogado na região.

Uma área gigante, com 1,5 milhão de quilômetros quadrados, ocupada por nada menos que 53 milhões de habitantes. Se fosse um país, o Nordeste teria o 19º território do mundo, a 24ª população e a 35ª economia.

Ainda assim, a região parece viver em eterna luta por (re) conhecimento. Externo.

O post, obviamente, vai tratar do viés esportivo. Futebol, para ser mais exato.

Apenas três clubes da região vão disputar a primeira divisão do Campeonato Brasileiro de 2012. Bahia, Náutico e Sport. Isso corresponde a míseros 15%. Mas nada muito distante da região Sul, que terá um time a mais.

Pernambuco, aliás, terá o mesmo número de equipes de dois estados do “eixo”, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.  Então, não cabe qualquer “coitadismo” nessa discussão.

Na teoria, o times do Nordeste têm como primeiro objetivo seguir na elite. Nada muito diferente de Coritiba, Figueirense, Portuguesa e Ponte Preta, diga-se de passagem. O título, a princípio, é uma utopia. As três torcidas têm consciência disso.

Mas isso não muda em absolumente nada a tendência de estádios cheios na elite. E não é por que Neymar, Vagner Love e Adriano vão jogar em Pituaçu, Aflitos e Ilha do Retiro. Longe disso. Os adversários podem jogar com juniores se for o caso.

Uma pesquisa indica que o direito econômico de Neymar é superior ao dos 337 jogadores inscritos no Pernambucano de 2012. Na lógica de alguns, então, isso prova por A+Z que o valor de mercado local é irrisório. Mas Neymar, como qualquer jogador, passa. Tem um tempo de validade. Sport e Náutico, por exemplo, estão aí há mais de cem anos.

Não chega a ser menosprezo de alguém abaixo de Porto Seguro, mas pura falta de conhecimento mesmo.

Os maiores clubes do Nordeste, com pelo menos sete times com mais de um milhão de torcedores, têm um público consumidor cativo, ávido por novos produtos.

Não vão disputar títulos nacionais em breve? Mas… quantos vão brigar por conquistas, de verdade? Todos os grandes do Sudeste?

Atlético-MG, em jejum de títulos nacionais há mais de 40 anos? Como surpresa, talvez.

O Botafogo, que em 39 anos só participou 1 vez da Libertadores? À margem dos 3 rivais.

São dois integrantes do chamado G12, grupo virtual com os maiores clubes do país, apesar de ser formado por agremiações longe de um padrão semelhante de títulos, torcida e orçamento. Sua sustentação baseada na tradição beira a incoerência.

Mas, de fato, o orçamento deste bloco é maior que a soma dos demais e continuará assim com toda certeza até 2015, no mínimo.

Trata-se do prazo do novo contrato da TV, com as supercotas. Nesse acordo, Flamengo e Corinthians, os mais populares do país, deverão ganhar R$ 100 milhões, cada.

Sport e Náutico, somando todas as receitas, vão faturar R$ 55 mi e R$ 40 mi este ano. O contrato de patrocínio do Leão é de R$ 6 milhões, ou 1/5 de um clube top no G12.

O PIB do país está concentrado no Sudeste-Sul. Portanto, a disparidade seguiu o foco do mercado. Se uma análise dita como fria aponta que os clubes dessas regiões seguiram o ritmo da aceleração econômica, por que não enxergar que há pelo menos cinco anos o Nordeste cresce mais que a média nacional (8,3% x 7,5%, em 2010)?

Por qual motivo esse mesmo processo não pode se estabelecer nos clubes locais?

Trata-se de uma questão de investimentos, ponto. Organização é outro departamento. O que dizer do Flamengo, que em um dia despeja milhões em um jogador e no dia seguinte não sabe como resolver uma pendência não menos milionária com outro? Não é modelo de gestão para ninguém.

Dentro de um ano, contudo, as três maiores cidades do Nordeste vão contar com arenas no “padrão” Copa do Mundo. Correndo contra o tempo, os clubes investem milhões em centros de treinamento de padrão elevadíssimo para a preparação de jovens valores. Torcedores estão sendo fidelizados, como sócios. Ninguém está parado, ocioso.

Enquanto esse processo de evolução não se torna 100% concreto, o que não se pode mais aceitar é a cegueira coletiva sobre algo inteiramente ligado ao Nordeste: os seus clubes como instituições sólidas, indiferentes a manejos da mídia.

Existem milhares (milhões) de torcedores da região que torcem por clubes de outros estados. Se foram turbinados pela era do rádio em 1900 e antigamente ou pela antena parabólica da TV, é outra (antiga) conversa.

O que importa é que os milhões que não arredam o pé dos times locais não vão mudar.

As médias de público vão continuar acima de 20 mil pessoas sem muito esforço. Talvez a falta de compreensão para esse fenômeno enxergue o Santa Cruz atolado em uma Série D com 40 mil pessoas no Arruda como “folclore”.

Ou o Sport ter colocado 2 mil torcedores em Santiago numa estreia de Libertadores como algo exótico. Difícil é imaginar torcedores do Botafogo fazendo algo do tipo.

Também não é fácil explicar um dado como esse olhando para o próprio umbigo, com o campeão da Libertadores, o Santos, empacado com 8.892 pessoas por jogo na Série A. Antes que alguém diga que isso foi pontual, basta checar as médias históricas do Peixe…

O único jeito talvez seja afirmar de forma efusiva mesmo…

“As torcidas nordestinas são um espetáculo. Sempre lotam os estádios!”

Tirando lampejos de glória, os representates regionais não alcançam feitos de grande magnitude. Daí, a conclusão de que seria melhor torcer por outras equipes?!

Mas, então… Não seria melhor ter logo um país dividido entre Barcelona e Real Madrid?

Se é para torcer por algo tão distante de você, sem o mínimo contato com uma arquibancada das antigas com sol na testa, é melhor atravessar logo o Atlântico…

Lá, pelo menos eles têm um ponto em comum com o Nordeste. Eles também lotam os estádios… E como.

76 Replies to “Não é um ensaio sobre a cegueira”

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