O Clássico das Multidões em sua essência é uma celebração do povo, muito antes de dividir a arquibancada para mais um jogo. Em 2016, no seu centenário, com 547 capítulos, é difícil imaginar que todos os torcedores chegavam juntos, que a resenha era compartilhada por horas à base de cerveja no antigo restaurante Colosso ou na calçada da Abdias de Carvalho, comendo um “patinho”, típico prato futebolístico que sumiu como tantos outros caprichos que construíram a imagem do embate entre Sport e Santa. Vivemos numa época em que cada torcida chega por um corredor separado pela polícia militar, com divisórias de até 30 metros entre as massas dentro do estádio, com o horário de saída marcado para cada uma. O vencedor sai primeiro, o derrotado espera quinze minutos. Tudo para evitar o encontro, justamente o que fomentou durante tanto tempo uma das maiores rivalidades do Nordeste, respeitada no país.
Eu fico com a velha lembrança da chegada na retilínea Avenida Beberibe, entre incontáveis bandeiras tricolores e rubro-negras, tremulando no solzão, parando e sendo parado para conversar sobre a expectativa da partida. Sobre viver por uma tarde uma das maiores experiências que o futebol pode proporcionar, sem exagero (supondo que seja possível não exagerar ao falar de futebol).
– Zé do Carmo vai mesmo para o jogo?
– Hoje é o dia de Leonardo, amigo…
– Se ele fizer dancinha, já sabe, né?
– Menino, cuida da tua zaga não…
– Aqui é só um jogo. A festa é na Ilha, você sabe.
– Isso se Zé não for expulso de novo. Endoida toda vez.
A conversa seria interminável. Mas acaba na catraca, com cada um se dirigindo para um portão. Lá dentro, o estádio dividido ao meio, tendo como separação o antigo colete verde-limão da PM. A tiração de onda era ali mesmo. De vez em quando, até um sisudo policial caía na risada. Se havia confusão, era algo muito menor, perdido na memória. Voltando um pouco mais no tempo, mas já não o meu tempo, a conversa teria como personagens Marlon, Betão, Sérgio China e Éder. E assim sucessivamente, até a era do registro em preto e branco, quando o vermelho presente em cada camisa, em diferentes tons e listras, só era visto in loco. Dito e feito. O nome “Clássico das Multidões” não é à toa.
Qualquer pessoa que goste de futebol e vista a camisa coral ou a rubro-negra tem uma grande história para contar. São 23 finais, com a 24ª já entrando no novo século. É, disparado, o maior número do campeonato estadual, num equilíbrio que se mantém nas arquibancadas, sendo 12 títulos do Sport e 11 do Santa Cruz. Atravessaram as respectivas histórias se enfrentando em decisões, praticamente, passando à margem somente nos anos 1930, na transição do amadorismo para o profissionalismo. A partir dali, fincaram raízes na Ilha do Retiro (1937) e Arruda (1943), com a cidade se agigantando em volta, a mesma e legítima lógica pernambucana do Oceano Atlântico, criado a partir da foz dos rios Capibaribe e Beberibe.
A romaria para o Adelmar da Costa Carvalho ou para o José do Rego Maciel tornou-se mais complicada justamente pelo crescimento do Grande Recife, desenfreado e desigual. De 1,5 milhão de habitantes em 1970 para quase 4 milhões. Entre edifícios espelhados e orlas bem cuidadas a morros desprovidos de muros de arrimo e guetos sem saneamento. Tricolores e rubro-negros estão espalhados em todas as camadas. Não é o fato de rotular o clássico como popular. Ele, simplesmente, é. Sem distinção, sem jamais baixar a cabeça independentemente da situação. Em um domingo, diz a história, a SeleSanta de Luciano Veloso e Givanildo Oliveira poderia sucumbir diante de um Esporte, como os jornais grafavam erroneamente no passado, em longo jejum. Ou o robusto Sport dos anos 1990, abocanhando oito títulos, poderia ser superado por um Tricolor escalado apenas pela raça e empurrado pelo povão.
A capital continuará crescendo, mesmo com bairros já espremidos, mas entre tantos detalhes de sua rica identidade, Sport x Santa Cruz sempre se fará presente. Mexe com a cidade. Pode até ser, também, questão de segurança pública, num olhar mais atual. Mas, acima de tudo, porque mexe com a paixão da imensa maioria dos pernambucanos, durante mais de 90 minutos.