Quando os abusos atropelam os sonhos de garotos

 

O Diario de Pernambuco começou a publicar nessa sexta-feira uma série de reportagens sobre os abusos sexuais aos quais são submetidos os meninos, a maioria de famílias carentes, quando entram para alguns clubes de futebol com o sonho de ser grandes jogadores. O material produzido pela equipe do Correio Braziliense traz relatos de vítimas e revela como funciona a rede criminosa que acaba com sonhos de meninos inocentes. Veja abaixo parte da matéria publicada na edição dessa sexta-feira.

 

Brasília – Podia ser de glória, alegria, de gol. Mas o grito preso na garganta de Francisco tem a ver com medo e vergonha. “Sinto muita raiva deles”, desabafa o garoto de topete no cabelo. Aos 12 anos, quando foi levado por um vizinho da família para jogar em uma escolinha de futebol próxima de casa, na periferia de Campo Grande (MS), sentiu pela primeira vez a chance real de se tornar um ídolo dos gramados, como sonhara.

O homem que alimentava as esperanças do garoto – com elogios, presentes e promessas – era o mesmo que, vez por outra, ajudava os pais dele com algum socorro financeiro. Ficava difícil compreender porque o “professor” tão generoso o despia, manipulava seu corpo, pedia que ele retribuísse os carinhos, por mais que Francisco tentasse demonstrar que não gostava daquela situação. Os abusos pioraram depois que o treinador chamou mais dois amigos, também instrutores de futebol, para participar das “brincadeiras”.

Três professores agiam na periferia de Campo Grande (MS). Vítimas tinham até 5 anos (IANO ANDRADE/CB/D.A PRESS)
Três professores agiam na periferia de Campo Grande (MS). Vítimas tinham até 5 anos

A violência durou quase dois anos, até que o menino, já aos 15, mudou de endereço com a família. Longe do problema, o rapaz preferiu manter a história em sigilo para, um dia, esquecer de tudo, da mesma forma que já nem se lembrava mais da vontade de ser um craque. No ano passado, porém, depois de ser preso em flagrante por abusar de duas crianças, José Martins de Santana, o “prestativo” professor de 49 anos, listou para a polícia nomes de outras vítimas, recentes e antigas, algumas de apenas 5 anos.

Pelo menos 10 garotos confirmaram as violações, entre eles Francisco, hoje com 19 anos. Os relatos levaram a delegada responsável pelo caso, Regina Rodrigues, aos outros dois treinadores, Paulo César da Costa, indiciado, e Antonio Alves de Oliveira, foragido. “A partir de uma prisão, acabamos descobrindo uma rede de abuso sexual, utilizando o expediente do futebol para atrair esses garotos, prometendo que os levariam para grandes clubes”.

A prisão de José Martins trouxe alívio para Francisco. “Fiquei pensando que errei por não ter denunciado antes. Ele fez mal para tanta gente, meninos até mais novos do que eu”, lamenta o rapaz, que diz ter encontrado na igreja apoio para falar sobre o assunto e se livrar do vício em maconha e cocaína. Vergonha, medo, falta de maturidade para compreender a gravidade dos abusos impediram Francisco de agir mais cedo contra Martins e os outros dois treinadores que o violentavam.

Vítimas precisam aguentar comentários dos vizinhos (IANO ANDRADE/CB/D.A PRESS)

Um deles, Oliveira, pouco antes da prisão de Martins, já havia sido denunciado. Pais de garotos de um bairro pobre na saída da capital sul-matogrossense, onde o homem de 49 anos tinha uma escolinha mantida por convênio com a prefeitura, revoltaram-se quando um dos meninos relatou o comportamento do técnico.

Sabendo que esse aluno não viajaria para um campeonato numa cidade a 500km de Campo Grande, por falta de dinheiro, ele fez a proposta. “Se você deixar eu chupar seu p., eu te levo para viajar”, contou o garoto de 13 anos, acrescentando já ter visto Oliveira praticar sexo oral em vários jogadores.