Nove anos após dar entrada no pedido de indenização por ter sido presa injustamente sob a acusação de fazer parte de uma quadrilha de sequestradores, a comerciante Lúcia Silvania Bezerra, 38 anos, conseguiu sua primeira vitória na Justiça. O juiz Edvaldo José Palmeira, da 5ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) condenou o estado a pagar indenizações por danos morais à comerciante e ao seu filho, que na época era uma criança. Lúcia foi presa diante do menino e ficou longe dele por um ano, um mês e 17 dias, tempo em que ficou reclusa na Colônia Penal Feminina do Recife, no bairro do Engenho do Meio.
O valor determinado pela Justiça foi de R$ 200 mil para mãe e filho. O advogado Afonso Bragança, no entanto, já adiantou que vai recorrer da decisão. O pedido feito pela vítima foi no valor de R$ 3 milhões para ela e o filho. O caso de Lúcia foi relatado pelo Diario de Pernambuco no mês passado, numa reportagem que trouxe à tona casos de injustiça ocorridos em Pernambuco. Lúcia foi presa em casa, aos 27 anos, no dia 30 de agosto do ano de 2005, sob a acusação de ter participado de um sequestro. Mesmo sem nunca ter mantido nenhum contato com os criminosos, foi indiciada pela Polícia Civil e presa. Lúcia teve o telefone celular roubado num assalto a ônibus. Ela prestou queixa do roubo mas não conseguiu bloquear a linha telefônica, que passou a ser usada pelos sequestradores para acertar o pagamento do resgate da vítima.
“Fiquei feliz com a condenação do estado, mas achei que o valor determinado foi muito baixo. É claro que nada nem dinheiro nenhum vai pagar o que eu passei. Eu fui enterrada viva naquele lugar. É uma pena o valor não ter sido o esperado. Agora vou ter que esperar mais alguns anos para saber qual o valor certo para receber. Mas saber que o estado foi condenado pelo erro já foi uma vitória”, declarou Lúcia Silvania. A sentança do juiz Edvaldo José Palmeira foi dada na última sexta-feira. Apesar da defesa ter entrado com pedidos de indenização por danos morais e materiais para mãe e filho, o magistrado condenou o estado ao pagamento apenas dos danos morais para os dois. A sentença ressalta que R$ 150 mil devem ser pagos referentes ao prejuízo de Lúcia Silvania e R$ 50 mil relativos ao filho dela.
Para o advogado, o valor determinado pela Justiça não está nem perto do esperado. “Apesar da decisão reconhecer o erro e a obrigação do estado em indenizar a minha cliente, entendemos que o valor arbitrado não é justo. Vamos recorrer dessa decisão para aumentar o valor da condenação. Além disso, o juiz só condenou o estado por danos morais. Vamos pedir que também ocorra a condenação por danos materiais. Lúcia ficou à disposição do estado por mais de um ano durante 24 horas por dia. Nesse período ela não teve condições de trabalhar, ficou doente e estava pagando por um crime que nunca cometeu. A prisão dela foi um grande erro”, ressaltou Bragança.
Depois do período atrás das grades, a polícia reconheceu o erro e pediu a soltura de Lúcia. No dia em que deixou a Colônia Penal, a primeira coisa que comerciante fez foi tomar um banho de mar. “Fui para a Praia de Boa Viagem e entrei no mar à noite”, recordou. A Procuradoria Geral do Estado informou que o estado ainda não foi intimado da decisão da condenação no processo de Lúcia Silvania.
Cinco estupros são registrados pela polícia por dia em Pernambuco. De janeiro a agosto deste ano, 1.126 casos chegaram à Secretaria de Defesa Social (SDS). Embora as estatísticas sejam assustadoras em todo Brasil, o retrato fiel da violência sexual pode ser muito pior. O 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que apenas 35% das vítimas de crimes sexuais denunciam o caso às autoridades.
Muitas dessas vítimas são violentadas por familiares. Outras, como nos casos divulgados recentemente, são abordadas por desconhecidos. A Lei Federal 12.015/2009 alterou a conceituação de estupro, passando a incluir, além da conjunção carnal, os atos libidinosos e atentados violento ao pudor. Entre as vítimas, estão homens e mulheres, embora o sexo feminino seja o mais atingido.
A delegada Marta Rosana, assessora do Departamento de Polícia da Mulher (DPMul), ressaltou que não existe um perfil formado de agressores nem de vítimas de estupros. “Muitas mulheres que chegam à delegacia são vítimas de seus maridos, namorados, irmãos, pais, avós ou vizinhos. Além dessas, existem aquelas que são escolhidas aleatoriamente por criminosos nas ruas. No entanto, a maior parte dos casos vêm de áreas periféricas”, apontou a delegada.
A policial orienta também que as vítimas de estupro devem procurar atendimento médico imediato. Um serviço diferenciado e sigiloso é oferecido desde o mês de julho pelo Centro de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sony Santos, localizado no Hospital a Mulher do Recife. Lá, além da assistência psicossocial, a mulher poderá fazer toda a profilaxia e registrar o boletim de ocorrência, caso seja da sua vontade.
Ainda segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 51.090 casos de estupros foram registrados em todo o Brasil no ano de 2013. No ano seguinte, houve uma redução de 6,7%, quando aconteceram 47.646 crimes no país. Nesses dois anos, Pernambuco ficou na oitava colocação entre os estados com o maior número de casos. O estado com a maior quantidade de estupros também no mesmo período foi São Paulo, a segunda colocação ficou com o Rio de Janeiro.
Dados do Anuário revelam ainda que no Recife aconteceram 510 crimes de estupros no ano de 2013 e 456 casos em 2014. Apesar dos números de crimes sexuais apresentarem redução em relação aos meses de janeiro a agosto deste ano comparados ao mesmo período do ano passado, os casos registrados em bairros de classe média do Recife levaram uma onda de pânico ao público feminino.
Para tentar escapar dos abusos, algumas mulheres estão investindo em técnicas de defesa pessoal. Como em todos os casos de violência, a polícia recomenda também que em possíveis estupros as vítimas não devem reagir, sobretudo se o agressor estiver armado. “É difícil dizer a uma mulher que está prestes a ser violentada que não reaja. Mas ela precisa entender que a vida é o seu bem maior. O trauma de um estupro, mas duro que seja, pode ser superadom, mas a vida não volta”, comentou a delegada Marta Rosana.
Outro tipo de crime sexual que vem preocupando a polícia e especialistas é o chamado “estupro corretivo”. São casos onde uma ou mais pessoas estupram homossexuais ou bissexuais como forma de “corrigir” sua sexualidade. O blog traz relatos de duas vítimas de estupro, uma delas que foi abusada pelo irmão por ser lésbica.
“Vivo trancada dentro de casa”
Dois meses e 22 dias depois de ter sido estuprada no bairro da Torre, na Zona Norte do Recife, uma doméstica de 40 anos não consegue dormir sem tomar remédios. Também nesse período, não conseguiu ainda ter relações sexuais com o marido. Era uma sexta-feira, dia 8 de julho, quando a vítima seguia para o trabalho, em outro bairro da Zona Norte. No meio do caminho foi abordada por um homem que anunciou o assalto. Após entregar seu telefone celular, como havia sido exigido pelo criminoso, a doméstica pediu para ir embora. No entanto, o homem que a segurava pelo pescoço, diante de ameaças, a fez seguir com ele até o final da Ponte da Torre, onde aconteceu a abordagem, para dar início a outro crime. O de estupro.
“Até hoje não estou dormindo na mesma cama que o meu marido. Também não consigo abraçar as pessoas direito e vivo trancada dentro de casa. Fiquei muito assustada depois de tudo que passei”, contou a vítima. A abordagem à doméstica aconteceu num horário de muito movimento. O crime foi praticado por volta das 12h e numa região onde transitam crianças e adolescentes alunos de escolas nas proximidades. “Ele mandou eu fingir que a gente era um casal de namorados e falou que se reagisse iria me matar. Foi quando ele me levou para a beira do rio, numa área por baixo da ponte, e fez o que queria comigo. Naquela hora eu só pedia a Deus para que ele não me matasse”, lembrou a doméstica.
Depois do abuso sexual, o criminoso foi embora levando o celular da vítima. Desesperada, ela saiu andando até a Praça do Derby, de onde telefonou para o marido pedindo ajuda. “Depois que meu marido chegou fomos para o hospital, delegacia e até fazer exames no IML (Instituto de Medicina Legal). Não desejo para ninguém o que eu passei. Eu só pensava nos meus dois filhos. Graças a Deus, agora ele está preso. Espero que pague por tudo que fez”, ressaltou a vítima.
No dia 8 deste mês, uma empresária de 32 anos foi abordada quando saía de uma lavanderia na Rua Amélia, nas Graças. O crime aconteceu por volta das 12h, quando o suspeito levou a vítima até a BR-101 Sul onde a estuprou. A situação foi muito parecida com a abordagem à estudante de medicina, no bairro de Parnamirim. A universitária de 29 anos foi abordada por volta das 18h do dia 16 de agosto, na Rua André Cavalcante, quando chegava na casa dos pais.
Ao abrir a porta do carro, ela foi surpreendida pelo suspeito que estava armado com uma faca. Ele invadiu o carro, assumiu a direção e seguiu com a universitária. Segundo a polícia, a vítima foi estuprada às marrgens da BR-101, foi fotagrafada nua e com roupa pelo suspeito e, por volta das 22h, abandonada com o veículo, nas proximidades da estação de metrô Antônio Falcão, na Imbiribeira. O criminoso fugiu levando o telefone celular da estudante. Por volta das 18h do último dia 19, uma estudante também foi vítima de estupro no bairro da Madalena. O crime aconteceu nas proximidades da Rua José Osório. Segundo relato da vítima, o agressor estava de bicicleta no momento da abordagem.
A dor provocada pelo próprio irmão
Quando tinha apenas 16 anos, Roberta (como iremos chamar nossa personagem) já sabia que gostava de mulheres. Também com essa idade, teve sua primeira namorada, sem que a família soubesse. Um dia, Roberta chegou em casa e encontrou um dos seus irmãos, aquele com o qual ela mais se identificava. O que mais era seu amigo. “Quando eu entrei em casa, ele perguntou de onde eu estava chegando. Respondi que vinha da casa de uma amiga. Foi quando ele me trancou no meu quarto e praticou todos os tipos de sexo comigo. Fiquei em estado de choque e ele dizia que estava fazendo aquilo para que eu aprendesse a gostar de homens. Foi horrível”, recordou Roberta. O crime aconteceu há 26 anos e não foi denunciado à polícia. A família preferiu o sigilo. Ela era caçula de sete irmãos.
O que houve com Roberta, que hoje tem 44 anos e mora num município da Região Metropolitana do Recife (RMR), é o que se denomina estupro corretivo. São casos onde uma ou mais pessoas abusam sexualmente de homossexuais ou bissexuais sob a alegação de “corrigir” a opção sexual de quem está sendo agredido. “Cheguei a mostrar para minha mãe o lençol da minha cama todo manchado de sangue e contei o que havia acontecido, mas ela não fez nada. No dia seguinte, tive que jantar na mesma mesa que meu irmão. Depois de muitos anos, numa conversa comigo, ele disse que estava arrependido e queria morrer. Respondi que para mim ele já estava morto. Até hoje quase não tem contato com ele”, contou Roberta.
Segundo a assessora do Departamento de Polícia da Mulher, delegada Marta Rosana, alguns casos de estupro corretivo têm chegado às delegacias especializadas recentemente. “Não posso dizer quantos são agora, mas algumas vítimas têm prestado queixa desse tipo de estupro. Geralmente são mulheres lésbicas que foram violentadas por homens”, apontou a delegada. Em junho, a Polícia Civil começou a investigar um estupro ocorrido no bairro do Passarinho, em Olinda. A vítima era lésbica e disse ter sido estuprada por pelo menos três homens durante a comemoração de uma festa de São João perto de onde elas moravam.
Para a advogada, feminista e assistente de programas da ONG ActionAid no Brasil Jéssica Barbosa o estupro corretivo é uma expressão de uma tentativa de imposição de uma suposta superioridade masculina. “O machismo não consegue respeitar ou aceitar que duas mulheres se amem e sintam prazer sem que um homem esteja envolvido. Daí, surge a perversa ideia de que um homem é capaz de “corrigir” aquilo que, na verdade, é a expressão da sexualidade de duas mulheres. Também se baseia na crença de que uma mulher só é lésbica porque ainda não conheceu algo que, em muitos momentos, se chama de homem de verdade”, destacou.